Fotógrafo ganhador do prêmio Turner fala de selfies e subculturas
Os homens têm cabelos curtos, grudados ao crânio, nas fotografias de Wolfgang Tillmans. Jochen na banheira. Anders tirando uma farpa do pé. Karl de perfil, e até mesmo o príncipe William de Orange, de armadura e gola rendada.
Tillmans ganhou fama nos anos 1990, fotografando o mundo do acid house para a revista "i-D Magazine". Em companhia de Jürgen Teller e Terry Richardson, ele formava a santíssima trindade dos fotógrafos de revista dos anos 1990, com um estilo que combinava poses casuais a iluminação incomum e continua a dominar o mercado mesmo passados 20 anos.
Teller cedeu à publicidade, e Richardson foi acusado de explorar sexualmente os seus modelos. Tillmans, por sua vez, se tornou artista. Ganhou o prêmio Turner em 2000 —o primeiro fotógrafo e o primeiro não britânico a recebê-lo, e, aos 32 anos, um dos mais jovens artistas laureados.
Ele define 1997, quando fotografou Kate Moss para a "Vogue" dos Estados Unidos, como o início de seus "grandes anos Caravaggio". Para ele, Caravaggio era apenas mais um jovem "lidando com as questões de sua era... sempre compreendi que contemplar a arte dos outros, e a do passado, é como contemplar o trabalho de um amigo", diz Tillmans, "Estamos separados pelo tempo, mas lidamos com questões em última análise parecidas".
Caravaggio certamente gostaria de ter comparecido a uma das lendárias festas no estúdio de Tillmans. Em um desses eventos, recentemente, as paredes e texto estavam revestidos de papel dourado. Marc Almond, do Soft Cell, tocou na abertura de uma exposição dos trabalhos do fotógrafo em Dusseldorf, no ano passado.
Em janeiro, Tillmans foi eleito para a Real Academia de Artes britânica por sua pintura. "Poderia também ter sido pela escultura", ele diz. "O que eu faço com a câmera é sempre tridimensional".
Em uma tarde de primavera no seu estúdio —que ocupa um piso de uma antiga loja de departamento dos anos '930 no bairro de Kreuzberg, em Berlim, encontro Tillmans em seu uniforme dos anos 1990: camiseta cinzenta, uma calça de moletom azul da Diadora, uma maçaroca de fita adesiva no bolso, tênis brancos de cano alto. Há uma janela do piso ao teto, e as paredes brancas são decoradas com suas colagens: seu pôster Freischwimmer verde para o 150º aniversário do metrô de Londres divide o espaço com ingressos para uma piscina, uma sacola plástica azul de uma galeria de arte e uma criatura azul e vermelha parecida com uma toupeira.
Encostada à parede há uma gravura de Patrick Caulfield. Um canto da mesa está recoberto de livros, e no meio há um grande vaso de tulipas murchas. Do lado oposto está o artista, me olhando com atenção.
"As pessoas pensam que fotografia é tecnicamente simples, ne?" (Ele pontua suas declarações com o "ne", uma palavra alemã intraduzível usada para enfatizar, ainda que também use expressões tipicamente britânicas como "sort of" no mais puro sotaque londrino).
"Mas a complexidade desse espaço, daqui até a gravura de Caulfield, e todos os objetos entre essas duas coisas —o cérebro pode computar o que está rolando por conta da estereovisão e do poder de processamento trabalhando em tempo real. Mas fazer com que essa experiência seja reproduzida em papel é muito, muito difícil. Essa é a força que me move, a questão: será que é possível? Há como fotografar isso?"
Como ele fotografaria isso?
"Acabei de olhar para a tulipa. A tulipa morta inclinada na direção da folha, o modo pela qual as duas se aproximam. Posso ver uma foto nisso. Há três —não, quatro— pilhas de livros, e minha reação inicial seria a de que isso é um clichê - são pilhas de livros. Mas outro lado meu diria, sim, mas é possível? Será possível fotografar essa cena?"
De suas primeiras imagens de meias secando diante de um aquecedor aos recentes campos de cores fortes criados na sala escura, todos os trabalhos de Tillmans fazem a mesma pergunta: como criar o novo com isso? Este ano ele terá uma grande instalação na bienal de arte europeia Manifesta, em São Petersburgo, onde dividirá um pavimento do Hermitage com Matisse (ele "não tem medo" dessa companhia), e publicará o mais abrangente catálogo de seu trabalho até o momento.
Tillmans nasceu no verão de 1968 em Renscheid, uma cidade da Renânia onde toda a população fabricava martelos, alicates e coisas assim. Seus pais exportavam ferramentas para a América do Sul. Tillmans não se saía bem em arte, na escola —queria ser jardineiro, e depois astrônomo, antes de descobrir a fotocopiadora de uma loja local.
Começou a tirar fotos dele mesmo e ampliá-las em até 400 vezes o tamanho original. Em duas fotografias de 1987, a imagem de um pedreiro sobre um andaime, tirada com a câmera telemétrica de sua mãe, é ampliada cada vez mais, até que o grão da imagem é mais proeminente que o homem. Ele usou metade do dinheiro que ganhou com o prêmio Turner para comprar uma fotocopiadora colorida a laser, e uma descendente dessa máquina continua presente em um canto do estúdio. Boa parte da arte alemã do século 20 trata do relacionamento entre homem e máquina, da Bauhaus ao Kraftwerk, mas para Tillmans o tema é quase um caso de amor.
Em lugar de fazer serviço militar, ele fez serviço comunitário em Hamburgo, ajudando enfermeiras a dar banhos em pacientes, durante o dia, e frequentando os clubes da cidade de noite. Enviou algumas das fotos que tirava nos clubes à "i-D Magazine", em 1989, antes de se matricular no Bournemouth & Poole College of Art and Design. Tillmans recorda uma liberdade que já não existe.
"O que parece normal agora —pessoas de países diferentes saindo juntas e se unindo em festas— nos anos 1990 parecia uma nova era, um senso de interesse pan-europeu compartilhado. A existência mesmo dessa música desordeira e descontrolada, house e techno, parecia desafiar a razão tradicional, e isso a tornava política. Havia drogas, o senso de moda ignorava os estilistas e a retórica era a de compartilhar, e não a de ser o gostosão da festa, ou ostentar mais que os outros. Eu sabia que aquilo tinha acabado assim que a 'Vogue' usou o título 'a volta do glamour' em uma de suas capas, em 1993".
A partir de 1992, seus trabalhos começaram a ser vendidos em galerias particulares de todo o mundo, e ele se tornou tão conhecido pela maneira de exibir as fotos —instalações que faziam as pessoas lembrarem de quartos de adolescentes ou quadros de avisos em lugares públicos— quanto pelas imagens em si. Alguns críticos ficaram apopléticos: aquelas imagens não passavam de retratos instantâneos. Em "I Didn't Inhale", uma mostra de 1997 na Chisenhale Gallery, via-se alguém urinando em uma cadeira ao lado de um beiral de janela na qual havia figos e abóboras. O olhar de Tillmans parecia abarcar tudo.
"Estética do instantâneo é uma frase chamativa", ele diz, "mas incorreta. Minhas fotos não eram fora de foco, ninguém tinha os olhos vermelhos. Nos anos 1990, era costume dizer isso, e nunca foi verdade. O que eles significavam era intimidade, imediatismo, casualidade, a percepção de casualidade".
Há uma caixa de vidro no telhado do estúdio, o topo de uma escadaria translúcida que Tillmans transformou em posto de vigia. Há um colchão no chão com um lençol branco e livros de Khalil Gibran e Richard Sennett ao lado do travesseiro. Dois telescópios apontam para a cidade. Quando não está calor demais ou frio demais, ele passa noites no estúdio, observando o céu.
"Algo interessante está acontecendo", diz Tillmans sobre os selfies e as imagens de Instagram sobre restaurantes. "Pode-se traçar esses elementos ao meu trabalho de 20 anos atrás. Obviamente não sou responsável por isso, mas existe aquele senso de que uma peça de roupa caída no chão tem algum significado. Não posso reclamar sobre os milhões de pessoas que fotografam o que estão comendo, mas eu não fotografava pratos ou naturezas mortas para mostrar a um amigo que tinha acabado de comer uma banana. Nunca o fiz, mas nos anos 1990 fui acusado pelos críticos de que meus temas eram rasos, vagos e desimportantes".
Vistas a 20 anos de distância, essas fotos se desenvolveram em famílias inteiras de imagens: o céu da janela de um avião, estrelado, ao nascer do sol, e depois nuamente azul. Beirais de janelas com uma lata de tinta rosa, ou batatas, ou uma fita cassete, ou uma vasilha com laranjas, graprefruits e tomates, roupas largadas.
Quando ganhou o prêmio Turner, Tillmans estava começando a registrar imagens que aparentemente retratavam o nada. Vinha recolhendo erros de revelação há anos, e começou a parecer cometê-los de propósito.
Na parede do estúdio, um retângulo verde grama com depósitos prateados sobre a superfície fica ao lado de uma natureza morta mostrando frutas em sacos plásticos. O trabalho abstrato era realizado pelo uso prolongado demais de produtos químicos na revelação das fotos. Ele controlava algumas coisas e deixava outras ao acaso.
Wolfgang Tillmans | ||
'Still Home', foto de 1996 de Wolfgang Tillmans, que recebeu o prêmio Turner da Tate Gallery |
"É claro", diz ele, "que essas imagens não significam coisa alguma". A natureza morta, ampliada em cores technicolor muito fortes, está repleta de detalhes: "Há muito mais informação nessas fotos do que você consegue lembrar. Assim, precisamos que os detalhes façam sentido. E é isso que é difícil de suportar, a falta de significado de tudo".
Tillmans começa a trabalhar às 10h, com seus assistentes de estúdio. Depois que eles saem, às 18h, ele tira uma soneca e depois trabalha sozinho até a 1h ou 2h. Se não está no estúdio, gosta de sair. Em 2004, criou dois grandes abstratos para o bar do Berghain, uma lendária casa de dança de Berlim. Tillmans cita o refrão de "Bedsitter", uma canção do Soft Cell —"dançando, rindo, bebendo, amando"— para descrever o que essa vida de festas lhe dá. Ele a leva tão a sério quanto o trabalho.
"As festas não deveriam ser tratadas como uma exceção extraordinária ao cotidiano. Vejo-as mais como nuanças diferentes de estar junto: a diversão sem controle e não tributada é muitas vezes vista como ameaça pelos políticos".
Desde 2011 ele passa menos tempo em Londres, uma cidade "workaholic", mas mantém uma base lá e a visita uma vez por mês para seu trabalho como curador da Tate Gallery. Em Berlim, vive ocupado mas não frenético.
No final de nossa entrevista, ele ligou para pedir uma pizza vegetariana, trocando o pimentão por brócolis. ("Que legume inútil, ne?" Não gosto dele, e está em toda parte, agora".), e depois saiu para uma palestra de Richard Sennett do outro lado da cidade. Ele recusa todos os pedidos de permissão para filmá-lo enquanto fotografa, mas deixa que eu veja quando ele registra uma imagem para uma nova coleção de abstratos: a câmera segura diante do peito, queixo para a frente. Um momento depois, ele está sentado sobre um armário e se inclinando para registrar o grupo de ângulo diferente. Em 2011, ele se deitou de barriga para baixo no chão para fotografar Lady Gaga. Tillmans ri ao ver a foto. "Exposição perfeita, ne?"
"Wolfgang Tillmans", uma monografia sobre 25 anos do trabalho do fotógrafo, está à venda pela editora Phaidon.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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