Documentários de rock experimentam com novos estilos
Mesmo antes que os diretores estreantes em longas Jane Pollard e Iain Forsyth soubessem que forma tomaria seu documentário sobre o músico Nick Cave, eles tinham um senso claro sobre o que não desejavam que o filme fosse. A maioria dos documentários de música gira em torno de expor um artista —o homem por trás do mito— ou de mostrá-lo em disputa com os colegas de banda, os executivos da gravadora ou seus demônios pessoais, mas nada disso se aplicava a Cave.
"Não queríamos criar uma tensão falsificada no coração da vida de Nick. Essa tensão não existe", disse Pollard sobre Cave, 56, cantor e compositor australiano. "Será que temos de esperar até que surja um problema antes que possamos nos envolver com essa mente? De que outra maneira se poderia fazê-lo de uma maneira que pareça significativa?"
A resposta deles está em "20,000 Days on Earth", um retrato idiossincrático que é mais ruminação que veneração e desmantela a arquitetura tradicional do documentário de rock, substituindo-a por um amálgama tortuoso de gêneros. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cinema Sundance, sendo lançado em uma temporada repleta de outras experiências dentro desse gênero.
"Pulp: A Film About Life, Death & Supermarkets", de Florian Habicht, que chegará aos cinemas no final do ano, usa o último show do Pulp como desculpa para celebrar a cidade da qual veio a banda, Sheffield, Inglaterra, uma comunidade de classe operária.
The New York Times | ||
Nick Cave em cena de '20,000 Days on Earth', filme de Iain Forsyth e Jane Pollard |
"Memphis", de Tim Sutton, que está em cartaz nos EUA, remove tudo —trama, antecedentes, até mesmo o desempenho no palco— até que só reste a atmosfera da qual a inspiração e as lendas emergem.
Porque Pollard e Forsyth vêm não do cinema mas das artes visuais e performáticas —eles encenaram uma recriação exata do último show de David Bowie como Ziggy Stardust—, acomodar as ideias por meio de distorções de forma é algo que lhes ocorre naturalmente.
Os dois confiscaram os diários de Cave e começaram a extrair frases e ideias capazes de ecoar o que haviam observado —um artista ainda em evolução na meia-idade, enquanto ele gravava um novo álbum. Foi assim que lhes ocorreu o título e o conceito central do documentário.
Toda a ação transcorre em um só dia fictício, que inclui apresentações em estúdio e no palco, passeios alucinatórios pela chuva de Brighton e da França, e figuras como o ator Ray Winstone e Blixa Bargeld, que foi parte da banda de Cave. Os diretores desenvolveram um "roteiro de ação" que dispunha uma estrutura, bem como o que deveria acontecer e onde isso deveria ser filmado, mas não criaram diálogos. Com isso, o que buscavam era algo a um só tempo rigorosamente construído, mas sujeito às reações e aos caprichos imprevistos de Cave.
"Trabalhar naquele estranho intervalo entre a ficção e o fato requer que você esteja disposto a se esforçar mais do que faria em um filme roteirizado convencional", disse Pollard. Mesmo assim, Cave aprovou a experimentação. "Era um trabalho que nós três realizamos não só sobre ele, mas sobre a criatividade, sobre uma verdade maior do que simplesmente aquilo que Nick Cave pensa e faz", disse Pollard.
De forma semelhante, tanto Habicht quanto Jarvis Cocker, o vocalista do Pulp, tinham algo de não convencional em mente para o filme sobre a banda. Em lugar de narrar a história do Pulp ou centrar atenção na celebridade de Cocker, o que os atraía era o povo de Sheffield, a cidade de Yorkshire que Cocker deixou ao partir para Londres décadas atrás, e que Habicht, que se criou na Nova Zelândia, jamais havia visitado.
Guiado em sua visita à cidade por um livro de letras de Cocker, repleto de anotações manuscritas, Habicht entrevistou pessoas em seus locais de trabalho e diversão, especialmente em torno do Castle Market, um mercado dos anos 60 que está sendo demolido.
"Adorei a ideia de fazer um filme sobre uma banda que amo, mas no qual eles não sejam de fato o centro do universo", disse Habicht. Algumas das pessoas com quem ele conversou eram fãs apaixonados do Pulp, enquanto outras nem faziam ideia de quem fossem esses heróis locais.
Chris Dapkins/The New York Times | ||
Willis Earl Beal no longa de Tim Sutton, 'Memphis' |
Ainda que "Pulp" fique mais próximo de um documentário de rock tradicional, graças às copiosas imagens de shows, o filme, como "20,000 Days on Earth", experimenta com conceitos de ficção, como por exemplo envolver Cocker, vestido em roupas elegantes, em uma troca de pneu na beira da estrada, ou convidar um coral local formado por aposentados para uma versão sublime da canção "Help the Aged" (letra: "um dia eles foram como você, bebendo, fumando e cheirando cola"), cantada em um café. Ninguém parece estar se levando muito a sério.
"Nos bons filmes de música que vi, a produção se alinha à personalidade" dos músicos, disse Habicht. "Não acho que funcionaria se o filme de Nick Cave fosse feito no estilo do filme do Pulp e o filme do Pulp fosse feito no estilo do filme de Nick Cave".
É difícil imaginar qualquer outra pessoa que não Willis Earl Beal ocupando as estilizadas molduras de "Memphis", mas o projeto de Sutton na realidade começou antes que Beal, nascido em Chicago, estivesse envolvido. O diretor já havia escrito uma versão do roteiro, ele conta, sobre "uma paisagem urbana como que calcinada, um personagem mítico com a voz de Deus que não quer ou pode se comunicar e em lugar disso vagueia pela neblina" de uma Memphis a um só tempo folclórica e moderna.
Assim, conhecer Beal, um astro em ascensão, carismático mas misterioso, introduziu um elemento inesperado no projeto.
"Tive uma ideia, e logo apanhei essa ideia me olhando na cara", disse Sutton. "A história não era mais minha".
Ecoando o método de Forsyth e Pollard, Sutton disse que seu principal trabalho era "preparar sets e preparar ideias básicas" que permitissem a Beal e aos demais artistas interagir, com suas próprias palavras. Em uma das cenas, Beal está acomodado em um estúdio em um sótão, com um teclado Casio e nenhuma outra instrução sobre o que fazer.
The New York Times | ||
Nick Cave em cena de '20,000 Days on Earth' |
"Ele começa a tocar algumas coisas, e uma dessas coisas é uma linda canção sobre ilusão", diz Sutton. "Ele poderia ter ficado ali e jogado o gravador no chão, ou em mim, e aquilo seria uma cena, o que conduziria a um filme completamente diferente", ele acrescenta, ainda intrigado com os caminhos que não foram percorridos.
Embora o elíptico "Memphis" seja ainda menos documentário que os dois outros filmes, Sutton mesmo assim deixou fronteiras porosas entre a preparação e o improviso, autenticidade e performance - para não mencionar o temperamental personagem de Willis Earl Beal e a pessoa real que responde pelo mesmo nome e porta o mesmo temperamento.
"Houve momentos em que Willis ficou muito confuso, e houve momentos em que ele sabia exatamente o que estava fazendo", às vezes dentro da mesma cena, diz Sutton. "E é por isso que nosso relacionamento criativo funciona, porque ambos estamos predispostos a não nos incomodarmos com o diálogo".
Os perfis de músicos tendem a idolatrar as pessoas que lhes servem de tema. Forsyth recorda com carinho o "absurdo" pedestal que se ergue em "The Song Remains the Same", filme sobre um show do Led Zeppelin em 1976. Mas os novos filmes vão mais longe ao convidar as audiências a refletir sobre essa idolatria. Quer seja a persona carrancuda de Nick, a identificação de Cocker com o homem comum, as elucubrações mitopoéticas de Beal - ou, aliás, os conceitos formais de qualquer dos três filmes -, estamos sendo convidados a ver como a arte e os artistas ousam e aspiram.
Nas palavras de Sutton, em referência à visão de seu filme sobre a cidade mitologizada que lhe serve de título, "cada imagem de 'Memphis' vê a cidade pelo que é", ele afirma, "e pelo que talvez seja".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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