Leia 'A Procissão', roteiro feito por Hilton Lacerda sobre a falta d'água
SEQ 1 -O DILEMA DO OLHAR (cozinha/sala de apartamento - int - noite)
Um jovem, aparentemente de bem, trajando uma bermuda e uma camiseta com motivos florais, serve dois copos de um drinque qualquer, mas de cores bastante fortes.
Experimenta e os coloca em uma bandeja. Sua pele é bastante branca e contrasta com as tatuagens coloridas e muito bem postas que adornam seu corpo. Equilibrando suas bebidas, sai da cozinha, atravessa uma primeira sala, completamente vazia, mas as paredes cobertas com fotografias de uma São Paulo quase antiga. Durante sua caminhada o jovem cheira discretamente o próprio sovaco.
Em uma segunda sala, bastante ampla, e toda mobiliada, um homem maduro, mas aparentemente conservador, o aguarda sentado próximo a uma janela que dá vista para a avenida Paulista. Serve-se do drinque e o cheira. O jovem de Bem senta-se ao lado dele e dá um gole em sua bebida.
Os sons que vêm da rua denunciam balburdia, confusão, protesto. Uma massa sonora que não conseguimos distinguir nem o sentido, nem a intenção.
Homem Aparentemente Conservador (leve careta): Eu não consumo álcool.
Jovem de Bem (simpático): É o que tenho, no momento. Fiquei com medo de descer e comprar água por conta da procissão.
Homem Aparentemente Conservador (sério): Não vejo necessidade de procissão. Para mim é uma questão técnica. Sou pragmático como o acaso.
Jovem de Bem (simpático): Quando você fica sério a maçã de seu rosto brilha. Fica uma graça.
Homem Aparentemente Conservador: Você me deixa encabulado.
Os dois ficam em silêncio, com olhares baixos e um sorriso bastante discreto em suas faces. O Jovem de Bem cheira mais um pouco o sovaco, de maneira discreta, quase imperceptível, aproveitando a posição em que se encontra.
Homem Aparentemente Conservador (sem levantar os olhos): Não está tão mal. E eu gosto desse cheirinho, assim, meio azedo. Te falei, né? Sou pragmático.
Neste momento os dois se encaram e suas faces vão perdendo a expressão de riso e começam a dar lugar a uma coisa penetrante, tocante, romântica. Olho no olho.
E, de repente, fogos de artifício explodem no vácuo da janela. Uma música grandiloquente vai tomando tudo, em um crescente sem fim. Os dois se encarando, indiferentes ao clamor das ruas.
SEQ 2 -POROROCA (av. Paulista - ext - noite)
Uma multidão está reunida na avenida Paulista. O público é heterodoxo e barulhento. Parecem demarcar um espaço. Movimentam-se como onda. Um mar de memórias antes de um tsunami.
Claramente percebemos as dissidências: em um dos cantos o grupo liderado pelo Opus Dei - o arcebispo de Eldorado à frente; outro tem a Fiesp como bandeira (os empertigados); anarquistas e trabalhadores tentam um acordo sobre o não trabalho como forma de não produção para afinar o discurso e caminharem juntos; os niilistas participativos vão em bloco independente; os evangélicos correm por fora com suas idiossincrasias; quantidade generosa de apátridas. Uma confusão difícil de ser observada de maneira mais específica.
Os fogos de artifício iluminam a cena, dando à confusão uma iluminação estroboscópica que nos remete a uma boate. O barulho se mistura com a música grandiloquente. O calor é infernal.
Aos poucos um coro vai se formando, e vai tomando uma proporção gigantesca e uníssona. Agora, o único som que ouvimos
Multidão (canto): Senhor, a nós dai água, se for vontade, a guia. Acompanha com humildade, é assim que te rogamos. Diante de tua grandeza a pequenez de minha natureza. Faltando-me a fé, a punição findará até a última gota. Mas veja em que estado teus olhos me encontram.
Confusão tremenda e a marcha parte numa agitação desesperada. Dois carros de bombeiros acompanham a procissão lateralmente - cada qual com um totem indescritível. As mangueiras desses carros, sem água, estão suspensas por homens e mulheres em trajes menores.
SEQ 3 -ABUNDÂNCIA (quarto do apartamento/janela/av. Paulista - int/ext - amanhecer)
O Jovem de Bem e o Homem Aparentemente Conservador estão numa cama larga e bastante confortável. A decoração nos remete a uma Atlântida imaginária. O som ambiente matinal é de uma corredeira -som mecânico.
A janela, com cortina em forma de ondas, deixa entrar uma luz matinal. E os dois nus, na cama; enlaçados. O Homem Aparentemente Conservador, que sem suas vestes perde a identidade, abre os olhos e fica mirando o Jovem de Bem, que traz um sorriso estampado no rosto, mesmo que dormindo. E depois de algumas provocações desperta.
Homem Aparentemente Conservador (no ouvido do jovem): Minha boca parece o solo do Raso da Catarina.
Os dois ficam em silêncio, se encarando e sorrindo.
Homem Aparentemente Conservador: Posso te pedir um favor? (o Jovem balança afirmativamente a cabeça) Eu gostaria que você realizasse uma sequência de coisas. É assim: primeiro você tem que acreditar que me ama, depois se masturbar muito aceleradamente, até que comece a escorrer uma quantidade abundante de suor. E aí, com minha língua, vou matando minha sede e provocando sua imaginação. Quanto mais imaginação, mais água. O que você acha? Acho que assim provo que meu pragmatismo não estava equivocado, e minha fé, mesmo que imperceptível, se manifesta.
O jovem nada responde, deixando apenas o riso alargar em seu rosto. Empurra o Homem Aparentemente Conservador de lado e começa a se masturbar.
E vai produzindo uma quantidade de suor suficiente para saciar a sede do outro, que passa a língua no peito, no sovaco, na virilha... Mas é tanto o suor, que depois de saciada a sede, o quarto começa a ser inundado.
Um pouco antes do afogamento, o Jovem, sem abandonar o ar zombeteiro, fala ao ouvido do outro.
Jovem de Bem: Água. (pausa pequena) Para mim já é chuva.
A água transborda pela janela, jorrando sobre uma avenida Paulista ressecada. E antes da Inundação total, apenas um gari que varria as calçadas da noite anterior percebeu o suor e correu com seu copo de plástico rumo ao excesso, tentando escalar as paredes que teimavam em dificultar sua vitória.
HILTON LACERDA é diretor do filme "Tatuagem" e roteirista de "Amarelo Manga" e "A Febre do Rato", entre outros
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