Crítica: Prosa musical de Jorge de Lima preserva linguagem da poesia
Em edição caprichada, sob a coordenação de Luís Bueno, a Cosac Naify relança "Calunga", romance de Jorge de Lima (1893-1953), tomando por base a edição de 1943, que apresenta várias mudanças em relação à primeira publicação de 1934.
A composição evidencia a qualidade do poeta que foi Jorge de Lima, muito mais do que a do romancista propriamente dito.
Isto porque a estrutura das ações está toda submetida ao gosto da elocução colorida e musical, evidente na escolha do léxico pitoresco, na imitação da fala local e, acima de tudo, no emprego dominante do recurso poético da enumeração, por meio do qual as palavras se justapõem, copiosamente, na composição de cenas descritivas de impacto.
Basta ler qualquer parte do livro para perceber que a narração sofre a competição muito forte da sucessão paratática: "Lula ainda ouvia o jongo soando, o vuvu, o anzambei, o bujamê, o afofiê tocando, tocando, Muxima dando ordens. Lemane fazendo mandinga para destruir tundanga de branco. Tango-arirá-ê-bangô!".
Ou: "(...) comia-se tudo o que não prestava para se comer: papel, molambo, graveto, meleca, cabelo, mijo acabado de sair, outras coisas".
Passa-se de uma enumeração a outra, de um quadro basicamente estático a outro, mais que de um acontecimento às consequências inéditas que poderia causar. O que está bem de acordo com a concepção geral do livro sobre as terras das Alagoas: os eventos são apenas gestos bruscos que repõem o quadro permanente de um lugar primitivo que recusa tenazmente qualquer mudança.
Nesse ambiente de estagnação, o herói, que volta enricado, culto e disposto a modernizar a terra de origem (a mesma do alagoano Jorge de Lima) não demora a perceber na carne a inutilidade de seus propósitos progressistas.
BEATO
Os rigores do clima e da região, análogos à bruteza da gente, desdenha de todo progresso material, histórico ou político. Apenas a passagem de um beato modifica por uns tempos a paralisia mórbida que a tudo contamina.
A aspiração do milagre reúne a tropa molambenta de caboclos, jagunços e coronéis, sob a eloquência lacônica do santo homem. Tudo o que ele profere, com mais ou menos ira, é um peremptório "anda!".
Mas nada anda, nem pode andar, e o beato vai, assim como veio. O telurismo vitorioso evidencia que nada escapa à opilação e a outras moléstias provenientes das emanações do solo empesteado do mangue. Nenhuma contingência histórica, nenhum ânimo moral ou político, vence a excitação e a degradação imanentes à "porca vida" das Alagoas.
Por aí se vê que o romance tem algo de naturalista, vale dizer, uma ideia de literatura que a aproxima da investigação de um estado social doentio. Mas a investigação busca menos um diagnóstico paracientífico dos males do que um comprazimento nitidamente perverso ao descrever os efeitos e sequelas deles.
É aí que o romance atinge o seu melhor feito literário: a degradação letárgica paradoxalmente construída pelo vocabulário lascivo e farfalhante, "num mais vasto prazer sexual, por todos os nervos do corpo".
CALUNGA
AUTOR Jorge de Lima
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 34,90 (192 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
Livraria da Folha
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