'Eu estava lá, eu vi tudo' conta repórter Gay Talese sobre marcha de Selma
O jornalista Gay Talese, 82, que cobriu as marchas de Selma a Montgomery ao lado de Martin Luther King, explicou à Folha porque acha o filme fiel aos fatos.
Folha - O sr. acha que o filme oferece um retrato realista do contexto político ao redor da marcha?
Gay Talese - Sim. Eu estava lá, eu vi tudo. O filme oferece um retrato muito realista do que aconteceu de verdade. Eu estava observando, ao lado da ponte Edmund Pettus, naquela tarde de domingo, dia 7 de março de 1965, quando os homens do xerife atacaram os que vinham marchando e os derrubaram no chão, depois, perseguiram os que escaparam pelas ruas da cidade e pelo bairro negro de Selma.
Eu fiquei em Selma pelos próximos 16 dias, acompanhando os manifestantes até o destino final, o capitólio de Montgomery, capital do Alabama.
Escrevi dezenas de matérias para o jornal "The New York Times" durante o período, incluindo um longo artigo para o suplemento Magazine, dois meses depois da marcha. Voltei para Selma depois da marcha, muitas vezes, nos anos 70, 80 e também nesse século 21.
Em 2006, em um livro meu, "Vida de Escritor", escrevi muito sobre Selma como era naquela época, em 1965, e como é hoje, cinquenta anos depois.
E também, lembre-se, eu sou um ex-aluno da Universidade do Alabama, estudei lá entre 1949 e 1953. Costumava visitar Selma durante os meus anos de estudante também. Eu conheço o meu assunto.
Quando vi o filme, fiquei impressionado com o modo como é acurado, visualmente e emocionalmente. Na tela, é possível ver exatamente o que eu vi como repórter jovem em cena, de volta em 1965, trabalhando para o "The New York Times".
Fui repórter do jornal de 1956 a 1965, quando saí de lá para ir para a "Esquire" e escrever matérias como "Frank Sinatra está gripado" etc, que foi publicada em 1966.
E quanto aos bastidores políticos, o filme é fiel ao que aconteceu?
Quem pode ter absoluta certeza do que aconteceu nas salas da Casa Branca? Agora, o clã de Lyndon Johnson (1908-1973) está protestando que o filme é injusto com o então presidente.
Essa é uma opinião política. Como disse em minha carta publicada no "The New York Times". Eu citei uma fonte importante, J.L. Chestnut Jr. (1930-2008), promotor e ativista que aconselhou Martin Luther King Jr. (1929-1968). Chestnut disse que os apoiadores de Lyndon Johnson estavam tentando interferir na história.
Eles quiseram transformá-lo no responsável pela marcha, e não Luther King, e mesmo hoje, 50 anos depois, os admiradores e apoiadores do então presidente ainda estão nisso, mas como eles sabem exatamente o que, exatamente, estava na cabeça e no coração de Lyndon Johnson?
Figuras políticas estão sempre testando para onde vai o vento. E, se eles sentem que podem estar do lado correto da história, eles colocarão o pescoço para fora. Mas, se sentem que o desenlace é incerto, o líder político vai jogar de forma evasiva. Eu acredito que Lyndon Johnson estava muito nervoso sobre a marcha até o chamado "Domingo Sangrento", no dia 7 de março.
As câmeras de televisão mostraram os negros sendo massacrados pelas forças da lei em Selma. O público norte-americano estava em choque, revoltado. Essas imagens fizeram com que a população subitamente simpatizasse e apoiasse as marchas.
As câmeras de TV levaram a história para as casas de milhões de norte-americanos, negros e brancos, e subitamente o sonho de Martin Luther King dominou e motivou os brancos da América. Obviamente, o seu presidente oportunista, Johnson, pulou, tentando agarrar o vagão histórico, e quis liderar a nação para uma conclusão a seu favor.
Como a maioria dos grandes políticos, ele queria a manchete dos jornais. Queria tomar esse grande evento histórico das mãos de Luther King —que havia ganhado o prêmio Nobel, havia sido capa da revista "Time", resumindo, que era tão ou mais famoso que o próprio Lyndon Johnson.
Resumindo, Johnson queria a marcha para ele, e gravá-la na história como um triunfo do partido democrata —ainda que os republicanos estivessem dominando o Sul. O Sul branco estava contra o governo federal, especialmente um que quisesse determinar como os brancos do Sul tinham de agir, como os brancos do Sul deveriam educar suas crianças, como deveriam dividir suas propriedades, quarteirões e bairros com os negros, etc.
De todo modo, meu instinto como repórter que estava lá é aplaudir o filme "Selma" pelo que conseguiu. Sim, podemos buscar detalhes, checar documentos e discursos e dizer: "isso é certo", "isso é certo pela metade" ou "isso é completamente errado". Mas finalmente, todos os julgamentos são subjetivos.
Os admiradores de Lyndon Johnson pensam e acreditam em uma coisa, e vão oferecer os fatos que justifiquem sua opinião. O outro lado, no qual me incluo, acreditou naquela época, e acredita agora, que os resultados obtidos movimentos de direitos civis foram inspirados pelos negros, comandados por King e não pelas ações humanas de Lyndon Johnson e seus apoiadores. Essa é minha opinião.
O que melhor recorda daquele dia?
Estava assustado quando vi o ataque aos manifestantes da ponte Edmund Pettus. Eu conhecia muita gente no Alabama, por muitos anos. Por conta disso, da minha experiência como um repórter de viagens nos anos seguintes e por causa da pessoa que eu era, eu achava que entendia o que era o Sul racista.
Lembre-se: quando eu era estudante na Universidade do Alabama, não havia estudantes negros! A universidade era composta apenas por estudantes brancos. Todos brancos!
Eu conheci pessoalmente o governador do Alabama, George Wallace. Ele se formou dez anos antes de mim, lá mesmo. O chefe de imprensa de Wallace, Bill Jones, estudou jornalismo comigo na Universidade de Alabama.
Ainda assim, devo dizer que mesmo eu estava despreparado para observar a loucura daquela repressão por parte da polícia. Me surpreendeu ver aqueles agricultores brancos que ajudaram as tropas. Anos atrás, no famoso livro "Elogiemos os Homens Ilustres", com fotos de Walker Evans e texto de James Agee, você vê retratos da pobreza branca no Alabama, durante a Depressão, nos anos 30.
Sempre pensei que aqueles eram os brancos do Estado e não esses que mostravam sua ignorância em apoiar a polícia porque se sentiam socialmente ameaçados.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade