Benedict Cumberbatch mostra inteligência para interpretar gênios
Com sua fronte larga e malares altos, Benedict Cumberbatch já foi comparado - e com alguma razão, especialmente se você assistiu ao seu trabalho em "Álbum de Família" - a uma lontra ou a Sid, o bicho preguiça do filme "A Era do Gelo".
Ele também tem uma daquelas vozes britânicas melífluas e retumbantes, capaz de acelerar e disparar diálogos perfeitamente articulados em velocidade de metralhadora. Consegue falar mais rápido do que a maioria das pessoas pensa.
Nos últimos anos, todos esses atributos —o crânio avantajado, a língua rápida, a dicção de elite— vêm permitindo que ele construa sua reputação ao interpretar personagens muito brilhantes mas nada normais.
Chris Buck/The New York Times | ||
O ator britânico Benedict Cumberbatch |
Seu papel mais famoso é o de Sherlock Holmes na série "Sherlock", da BBC, uma versão moderna do velho e lendário detetive, retratado como sociopata funcional mas entediado, desprovido da menor percepção sobre os sentimentos humanos e disparando as famosas deduções de Holmes em velocidade de nave espacial.
Ele também interpretou Khan, o alienígena criado por engenharia genética, em "Além da Escuridão - Star Trek", no qual sua voz sepulcral e pronúncia cuidadosa e rápida eram em si indicações de vilania antinatural.
Parecendo se contorcer no interior de sua própria pele, Cumberbatch fez o papel de Julian Assange, do WikiLeaks, em "O Quinto Poder". (O sotaque no caso era australiano, não britânico, e Cumberbatch estava mais parecido com David Bowie do que com Sid, o bicho preguiça.)
E agora, em "O Jogo da Imitação", ele é Alan Turing, o canhestro e excêntrico gênio britânico que ajudou a decifrar o código Enigma alemão durante a Segunda Guerra Mundial e mais tarde foi perseguido por seu próprio governo por ter admitido sua homossexualidade, e se viu forçado a se submeter a uma castração química. A morte dele, em 1954, pode ter sido suicídio.
O Turing de Cumberbatch não fala rápido —gagueja um pouco, como se seu cérebro girasse em velocidade alta demais—, mas é um homem brilhante e ocasionalmente acerbo, e o retrato que o ator oferece é tão pungente e comovente que lhe valeu uma indicação ao Globo de Ouro e o colocou em todas as listas de palpites para o Oscar.
"Com Benedict, não há como encaixá-lo em uma categoria", disse recentemente Morten Tyldun, o diretor de "O Jogo da Imitação". "Ele tem um grande número de camadas, exatamente como seu personagem".
Enquanto filmava o "Ricardo 3º" de Shakespeare para a BBC, Cumberbatch tirou alguns dias de folga em novembro para o trabalho de divulgação de "O Jogo da Imitação" - entrevistas, sessões de fotos, participações nos programas de Jimmy Fallon e Jon Stewart —e, no final do processo, estava visivelmente cansado.
Em nossa conversa vespertina em um restaurante na região sul de Manhattan, sua voz ocasionalmente se desacelerava e perdia volume, como se as baterias do ator estivessem no fim.
Mas Cumberbatch, bem humorado e gracioso de uma forma que boa parte de seus personagens cerebrais não são, se animou ao falar de Turing. Com uma careta de reprovação, fala sobre o tratamento que o personagem recebeu do governo britânico.
"As pessoas sempre me perguntam qual é o trabalho mais difícil que já fiz", ele conta, "e sempre respondo que é aquele que estou fazendo no momento. Mas alguns deles realmente mexem com seus nervos, se conectam com você, e havia tanta urgência no papel de Turing. Foi um dos principais motivos para fazer o papel —para que as pessoas compreendessem quem foi esse homem e o que aconteceu com ele, o que ele realizou e o quanto ele é importante para nós ainda hoje. É um papel extraordinário, um grande desafio para qualquer ator, mas ao mesmo tempo não há como estar envolvido em uma empreitada mais nobre".
Fazer o trabalho de divulgação do filme estava sendo um prazer, ele disse. "Não me incomoda em nada contar às pessoas que homem maravilhoso ele era".
Quanto a sempre ser escalado para papéis cabeça, Cumberbatch diz que "se isso for verdade, não é assim tão ruim, mas nem acho que seja verdade". Ele fala que interpretou William Pitt em "Amazing Grace" e um escravocrata rural em "12 Anos de Escravidão".
E ele poderia ter acrescentado um agente secreto gay em "O Espião que Sabia Demais", um oficial de cavalaria da Primeira Guerra Mundial em "Cavalo de Guerra" e um fabricante esquisitão de confeitos em "Desejo e Reparação".
COMPARAÇÃO
Muita gente compara Turing a Sherlock, Cumberbatch acrescentou —os dois são brilhantes, especialmente em raciocínio dedutivo, mas não muito competentes socialmente—, mas ele acredita que a conexão mais forte seja entre Turing e Christopher Tietjens, o personagem que ele interpretou em "Parade's End", adaptação que a BBC produziu em 2012 de uma sequência de romances de Ford Madox Ford.
Tietjens, baseado em parte no autor dos romances, é um aristocrata pretensioso de Yorkshire que se apega aos valores da era eduardiana à véspera da Primeira Guerra. Nos livros ele é descrito como o homem mais inteligente de Londres, mas como Turing ele é desajeitado e sem noção no contato com os outros.
"Ele é um homem brilhante, arrogante diante da inépcia e da indiscrição moral", diz Cumberbatch. "Vive em uma era de grande hipocrisia, e é um homem em descompasso com o seu tempo. O mesmo pode ser dito sobre Turing". O ator também insistiu em minimizar a falta de traquejo social dos dois, em sua interpretação.
"Os personagens que realmente nos interessam, que refletem uma verdadeira complexidade " —ele faz uma pausa. "Talvez eu esteja falando de mim mais do que deveria, mas parece simplista falar sobre eles em termos de facilidade social ou dificuldade social."
"Acredito que é porque sejam extraordinários, porque respiram um ar um pouco mais rarefeito. Eles são notáveis, e portanto distintos. Mas continuam a me parecer simpáticos, abordáveis, e em última análise inspiradores".
Tietjens é descrito nos romances como "um saco de carne com olhos de peixe das profundezas". Para fazer o papel, Cumberbatch engordou e usou um traje que o fazia parecer mais gordo, e uma prótese para fazer com que suas bochechas parecessem maiores.
A transformação física não é inteiramente convincente, mas em todos os demais aspectos o seu Tietjens é o perfeito cavalheiro britânico, e seria desculpável imaginar que Cumberbatch tem origens parecidas. (Ele recentemente anunciou seu noivado com a cineasta Sophie Hunter da maneira tradicional —com um anúncio no jornal londrino "Times".)
Mas Cumberbatch é filho de atores, Wanda Ventham e Timothy Carlton (que adotou um pseudônimo por achar que ninguém contrataria um ator chamado Cumberbatch). Os dois estão perto dos 80 anos e continuam trabalhando; interpretam os pais do protagonista em "Sherlock".
Mas tinham uma vida diferente em mente para o filho e, com considerável sacrifício, o matricularam em Harrow, possivelmente a segunda mais refinada (depois de Eton) entre as escolas privadas britânicas. (Turing, que era perseguido na escola, teria se sentido péssimo ali; Tietjens teria adorado — é o tipo de lugar em que meninos ainda usam casacas no domingo.)
"Eles estavam tentando me dar uma educação que me garantisse as oportunidades mais extraordinárias que uma criança pudesse desejar", disse Cumberbatch, acrescentando que pensou em aproveitar a oportunidade.
"Passei muito tempo debatendo a ideia de me tornar advogado", ele diz. "É uma profissão que exige talentos parecidos com a de ator. Mas depois descobri que ser advogado é uma profissão tão precária quanto ser ator".
CUMBERBITCHES
De muitas maneiras, "Sherlock", que estreou em 2010 e é hoje a série mais assistida da TV britânica, por larga margem, foi o ponto de transformação da carreira de Cumberbatch.
Tornou o ator coadjuvante competente que ele era, mais conhecido por séries televisivas e pelo teatro, em um galã imensamente popular na Internet, perseguido por enorme legião de admiradoras que se designam "Cumberbitches". Uma delas publicou um poema a respeito dele na "London Review of Books".
Mas por muito tempo, seu trabalho passou um tanto despercebido. Antes de contratá-lo, Steven Spielberg, que dirigiu "Cavalo de Guerra", não havia assistido a "Sherlock". O mesmo vale para Steve McQueen, de "12 Anos de Escravidão", e Tyldum.
John Wells, diretor de "Álbum de Família", deu a Cumberbatch o papel do carente e vulnerável Little Charles (o completo oposto de todos aqueles personagens geniais e excêntricos) depois que o ator enviou um vídeo de audição gravado em seu celular.
"O trabalho dele foi extraordinário", disse Wells recentemente, "e fiquei com vergonha por não saber quem Benedict era".
Quando a diretora Susanna White contratou Cumberbatch para "Parade's End", ela tampouco havia assistido a "Sherlock". White o conhecia principalmente pela minissérie "To the Ends of the Earth", da BBC, na qual ele interpretava um jovem aristocrata britânico viajando de navio à Austrália.
Ele "era respeitado mas não encabeçava lista alguma de preferências", ela disse recentemente, e sugeriu em e-mail que o motivo para que Cumberbatch seja tão centrado hoje é que "ele demorou um bom tanto a fazer sucesso".
"Ele sabe o que é batalhar", ela afirmou.
White o contratou não tanto por seu potencial como astro mas sim por sua inteligência e humor ágil. O roteiro, de Tom Stoppard, era denso e complicado, ela explicou, e Stoppard ia muito ao estúdio e era exigente quanto à maneira pela qual os atores diziam suas linhas.
Porque o personagem de Tietjens não é alguém de quem as pessoas gostem instantaneamente, White precisava de um ator que levasse as pessoas a se apaixonarem por ele.
"Foi um tremendo desafio", ela disse. "Mas ele tem uma energia inesgotável, e trabalha sempre com toda intensidade. Ele tem essa capacidade de se entregar por inteiro a um personagem".
Agora, se ela vai com Cumberbatch a algum lugar, eles imediatamente são cercados por fãs. "Ele não é um galã de matinê - não é bonito daquele jeito, mas as pessoas o adoram. Minha filha adolescente, minha mãe, que tem mais de 90 anos. De repente, ele virou astro, do dia para a noite".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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