CRÍTICA
Peça 'Valéria e os Pássaros' retrata bem marcas deixadas pelo fascismo
Já repararam que, na literatura fantástica, personagens que falam com os mortos não o fazem sempre que desejam? Almas penadas aparecem sem pedir licença. Trazem possivelmente um recado indesejado, acabam com o repouso, contaminam a história.
Pois "Valéria e os Pássaros", texto do espanhol José Sanchis Sinisterra, tem como protagonista uma mulher que não vê apenas fantasmas. Ela recebe uma legião de pessoas que morreram, enquanto busca por entre as almas penadas o sujeito que um dia amou.
O valor do espetáculo, encenado agora pela Velha Companhia, se equilibra no desenvolvimento dessa metáfora poderosa sobre o confinamento. Obcecada com o passado, Valéria se aliena.
Na criação desse arquétipo, a questão é levada um passo adiante: entre os mortos, há vítimas de uma situação política repressora. Valéria torna-se então uma figura trágica, fadada a naufragar na história (seja com "h" maiúsculo ou minúsculo).
Velha companheira de momentos políticos marcados pelo autoritarismo, a literatura fantástica neste caso parece propor não a denúncia do fascismo, mas a compreensão de seus fantasmas como traços de um tormento.
Lenise Pinheiro - 5.mai.2015/Foilhapress | ||
Alejandra Sampaio (em pé) e atores da Velha Companhia em cena de "Valéria e os Pássaros" |
Na sessão de terça (12), a encenação não começou bem porque, nas primeiras cenas, a atuação de Alejandra Sampaio infantilizou a personagem Valéria, sem deixar nuances. Não se trata exatamente de defeito ou precariedade, é um estilo. Ou uma leitura que, com o desenrolar da peça, vai ganhando mais sentido.
Aos poucos, a montagem, dirigida por Kiko Marques, se encorpa. Os mortos entram e saem de cena em cadeiras de roda, com trajes de aparência empoeirada. Despejam suas aflições sem que haja muito tempo para serem digeridas. Cria-se no espaço cênico um fluxo contínuo, com dramas pessoais expostos sem pesar, precisamente graves e ligeiros.
Acopladas às cadeiras, luminárias marcam desaparecimentos súbitos. As almas dos personagens se dissolvem no conjunto, como instrumentos musicais compondo massas sonoras pouco harmônicas em torno de uma protagonista agonizante.
Os traços de didatismo do início do trabalho somem, felizmente. A atriz Alejandra faz surgir então uma personagem angelical e que, com boa dose de inocência, não vê adiante o precipício. Tão bem orquestrado, esse tear de vozes cria a sensação vertiginosa de um instante derradeiro.
VALÉRIA E OS PÁSSAROS
QUANDO seg. e ter., às 20h; até 21/7
ONDE Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363, tel. (11) 3221-5558
QUANTO grátis
CLASSIFICAÇÃO 12 anos
AVALIAÇÃO muito bom
Livraria da Folha
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