CRÍTICA
Protagonista mantém a sua graça em novo livro de Harper Lee
Os historiadores da arte falam na presença de um "sorriso arcaico" nas esculturas gregas mais antigas. A estátua do atleta tem algo da rigidez egípcia —mas um toque de serenidade e ironia roça os lábios do modelo.
O mesmo sorriso ressurge, dizem especialistas, em outros momentos de aurora civilizacional. O famoso anjo medieval da catedral de Chartres e as estátuas de Angkor Wat, no Camboja, também parecem abençoar o mundo num espírito de distância e plenitude.
Seria exagero ver no Alabama de fins dos anos 1950 algum laivo de "aurora civilizacional". No máximo, aquela parte furiosamente racista da sociedade americana preparava-se para a irrupção do movimento pelos direitos civis na década seguinte.
Adams Carvalho/Folhapress | ||
Mesmo assim, paira um sorriso delicado e luminoso no início de "Go Set a Watchman", romance da americana Harper Lee que será lançado nesta terça (14) e que teve o primeiro capítulo divulgado na sexta (10) pelo jornal britânico "The Guardian".
Como vem sendo noticiado, trata-se de um livro escrito há quase 60 anos, antes de "O Sol é para Todos" ("To Kill a Mockingbird"), único romance publicado até hoje pela escritora nascida em Monroeville, Alabama, em 1926.
Em "Go Set a Watchman", encontramos uma moça sulista, Jean Louise Finch, chegando de trem à sua terra natal após uma temporada em Nova York. Em "O Sol é para Todos", a mesma Jean Louise conduzia a narração —mas era só uma menina espertíssima, nos seus sete ou oito anos.
Ainda que o tema de "O Sol é para Todos" seja a violência de uma mentalidade ainda escravagista, um humor infantil, puro e lúcido faz todo o encanto da menina.
No livro que se vai publicar agora, Jean Louise não é mais a narradora em primeira pessoa, mas permanecem a graciosidade, a capacidade de provocar os outros, de arreliá-los para em seguida distender magicamente o clima que ia azedando por culpa sua.
ESTAÇÃO
O recurso de começar um livro com a chegada da personagem a uma estação pode parecer batido, e não há, em "Go Set a Watchman", a maestria de "O Sol é para Todos" em distribuir aos poucos informações necessárias para que o leitor se aclimate ao lugar e a seus habitantes.
O início do capítulo parece um pouco entulhado de nomes e dados —ainda que se abra espaço para a vitalidade cômica de Jean Louise.
Mas quando ela finalmente chega à estação, e é recebida com um beijo estalado na boca por seu antigo amigo e namoradinho de infância, a luz de um "sorriso arcaico" toma forma maravilhosamente a cada parágrafo do texto.
Henry Clinton, ficamos sabendo, é a melhor pessoa de todo o condado. Essa unanimidade de opiniões, que dá um tom provinciano e ingênuo à narrativa, felizmente se confirma no bom humor do rapaz. Ele nota que sua antiga companheira de travessuras, arisca e imprevisível, foi com o passar dos anos se tornando um "razoável fac-símile de ser humano".
O diálogo dos dois é uma proeza de equilíbrio entre seriedade e troça. Henry propõe casamento a Jean Louise; ela "está quase apaixonada por ele", mas não é de se dobrar a roteiro tão convencional. Eles se irritam, logo fazem as pazes —e o capítulo termina em estado de graça.
Para o leitor brasileiro, o lançamento desse novo livro de Harper Lee não tem o impacto que se produz sobre gerações de americanos que se embeberam nas veias de "O Sol É para Todos".
O acontecimento jornalístico não deixa de ser ocasião, entretanto, para se tomar contato com uma escritora que —a julgar por esse breve capítulo— é uma artista irresistível.
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