crítica
Adaptação de Kafka, 'O Filho' é para ser vista mais de uma vez
Livremente adaptado de "Carta ao Pai", de Franz Kafka, "O Filho", peça do grupo Teatro da Vertigem em cartaz no Sesc Pompeia, desloca um dos pilares da companhia. Agora é o texto que parece dar caminhos para a encenação, e não o contrário.
Essa hierarquia (ou a tentativa de quebrá-la) está na base do trabalho do grupo, que sempre criou a partir de processos colaborativos. O Vertigem não encena peças escritas fora de seu próprio domínio. O processo de criação é um só, autores, atores e diretores navegam no mesmo barco.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Os atores Rafael Lozano (de camisa xadrez) e Sergio Pardal na peça "O Filho", do Teatro da Vertigem. |
Pois "O Filho" traz traços de um texto mais independente, com ótimo resultado, aliás. A peça de Alexandre Dal Farra retoma, no grupo, discussões fundamentais da dramaturgia contemporânea, especialmente ao compreender e reelaborar novas percepções sobre o que são a memória e a passagem do tempo.
Eis um trecho do texto: "Esse corpo era dela, ela foi a última dona dele. Agora ela deixou ele aqui, virou um tipo de resto".
A palavra "agora" cria ruído com a conjugação do verbo "deixar" no passado. Tal corpo foi já deixado, mas permanece sob o mesmo estado, "um tipo de resto".
Quanto tempo teria passado no intervalo? Com uma profusão de construções similares, o texto de Dal Farra deixa o espectador sem norte.
PASSADO E PRESENTE
Não sabemos, durante a peça, o que é passado e o que é presente. Reverberações do futuro permanecem latentes, como um filho por vir. O tema central, enfim, é a relação entre o masculino e a gestação, com o feminino ocupando papel secundário.
Há três personagens centrais no espetáculo: com o nascimento de um menino, o pai se torna avô, e o filho se torna pai. O eixo, na história, será o sujeito que está no meio dessa sequência, um homem passando pela história de sua ruína.
A encenação de Eliana Monteiro faz a leitura não de uma memória que vai se desfazendo com o tempo, mas de um acúmulo.
O espetáculo ocupa um galpão, onde o espectador divide espaço com móveis, televisores, colchões, espécie de depósito de objetos e almas. É um trabalho para ser visto mais de uma vez.
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