Montagens de Shakespeare são destaques do Festival de Avignon
William Shakespeare foi a principal aposta do 69º Festival de Avignon, um dos mais tradicionais eventos teatrais do mundo, que termina neste sábado (25).
O diretor francês Olivier Py escalou três obras do bardo inglês para coroar sua segunda empreitada na liderança do festival, em meio a cerca de 40 espetáculos selecionados para a mostra principal.
O próprio Py abriu o evento, no dia 4 de julho, com a tragédia "Rei Lear" para uma plateia de 2.000 pessoas no Palais des Papes, misto de fortaleza e castelo apelidado de Vaticano da Idade Média.
Thomas Ostermeier, diretor do célebre teatro alemão Schaubühne, e o português Tiago Rodrigues, figura em ascensão na Europa, montaram respectivamente "Ricardo 3º" e "Antonio e Cleópatra".
Py levou 30 anos para se arriscar em "Rei Lear", sua peça shakespeariana preferida. Mas a crítica francesa foi unânime ao concluir que o tempo não foi suficiente. A palavra "desastre" apareceu em diversos jornais franceses.
Ele fez uma versão deturpada da obra, norteando toda a montagem pela frase "teu silêncio é uma máquina de guerra", dita por Lear a sua filha preferida, Cordélia.
Na leitura de Py, a recusa de Cordélia em expressar o amor paterno simboliza uma ruptura não somente familiar, mas absoluta no mundo testemunhado por Lear –o rei que enlouquece após ser traído por familiares.
Para Py, ela é a raiz das catástrofes políticas da modernidade. "De forma anacrônica, a peça fala sobre o que aconteceu no mundo entre 1914 e 1989", diz no programa da peça, citando o exemplo da tragédia de Auschwitz.
Sua Cordélia não fala em cena. Em vez disso, rodopia pelo palco vestida de bailarina clássica. Em boa parte da peça, é ainda mais literal em seu manifesto silencioso ao tapar a boca com um esparadrapo.
Anne-Christine Poujoulat/AFP | ||
O ator Philippe Girard em "Rei Lear" no "Palais des Papes" em Avignon |
TIRANO CARISMÁTICO
Considerado triunfo do festival neste ano, ao lado de "Árvores Abatidas" (versão do polonês Krystian Lupa para texto homônimo de Thomas Bernhard), o "Ricardo 3º" de Ostermeier também explorou as fragilidades do mundo contemporâneo.
Para ele, "Ricardo 3º" –o nobre corcunda e manco que faz de tudo para assumir o trono– é um convite para o espectador se debruçar sobre "suas próprias deficiências".
Por isso sua intenção em fazer um Ricardo carismático, capaz de despertar identificação com o espectador. "Ele é um demônio com quem o público compactua", disse Ostermeier à Folha.
Mestre da manipulação das palavras, Ricardo é capaz de ultrapassar a barreira da feiura e da deficiência, alcançar seus objetivos mais sórdidos e amorais, trapacear, assassinar e ainda seduzir o público. "Era necessário deixar a plateia fascinada por esse ser humano", explica o diretor.
Ostermeier encomendou uma adaptação em prosa para a montagem. Segundo ele, seria impossível conservar a cadência dos versos na língua alemã. Também cortou 40% da obra, reduzindo-a aos fatos mais importantes.
Já Tiago Rodrigues desconstruiu "Antonio e Cleópatra" por completo, extraindo apenas o perfume dos personagens e das ações essenciais da trama, como o encontro e a separação dos protagonistas.
Inteiramente reescrita, a história de amor, vivida de fato entre o militar romano e a rainha do Egito, subiu ao palco como um longo poema lírico narrativo, sem diálogos, apresentado pelos atores Sofia Dias e Vítor Roriz.
É a linguagem o verdadeiro protagonista do espetáculo. Ela constrói personagens, trama e cenário.
O jogo provoca um distanciamento entre personagens e atores. Em cena, os intérpretes alternam entre serem eles próprios e os protagonistas. "Não acredito que podemos representar os grandes sentimentos, aqueles que são maiores do que a vida. É preciso lembrar que há um limite para convencer alguém de ser um outro", diz Rodrigues.
PONTOS ALTOS
- Dos cerca de 1.400 espetáculos que compõem o Festival de Avignon, havia público e espectadores para todos os gostos e estilos
- A cidade não se restringiu à programação do festival.
- A cidade virou uma festa sem fim, com os artistas invadindo suas ruas, distribuindo panfletos, cantando e fazendo pequenas cenas de seus espetáculos para arrecadar público
- Jornais traziam edições especiais gratuitas sobre o festival, espalhados por todos os cantos da cidade, alguns deles com críticas diárias
PONTOS BAIXOS
- A falta de critério de alguns espetáculos selecionados para a mostra principal do festival, como "El Syndrome" (A Síndrome) e "Quando Eu Voltar para Casa, Serei Outro", dos argentinos Sergio Boris e Mariano Pensotti
- O calor das salas dos espetáculos "off", que pode chegar próximo dos 40º C.
- O ar-condicionado dos teatros muitas vezes não dá conta do verão do interior da França
- A falta de transporte na cidade, que fica completamente interditada para táxis e ônibus e não tem metrô
A jornalista e dramaturga GABRIELA MELLÃO viajou a Avignon para apresentar a peça "Nijinsky - Minha Loucura É o Amor da Humanidade", de sua autoria.
Livraria da Folha
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