Nobel de 2010, Vargas Llosa critica distorção atual da escola realista
"Ainda sou apaixonado por Madame Bovary", diz o peruano Mario Vargas Llosa, 79.
O Nobel de literatura de 2010 tem seu ensaio clássico sobre Gustave Flaubert, "A Orgia Perpétua", relançado no Brasil e coloca o ponto final em mais um romance.
Em entrevista à Folha, por telefone, o autor fala, de Nova York, a respeito de "Cinco Esquinas", thriller sobre jornalismo sensacionalista, e comenta como ter virado notícia por causa de um novo relacionamento amoroso ensinou-lhe algo sobre a natureza humana.
Borja Sanchez-Trillo/AFP | ||
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Mario Vargas Llosa durante debate em Madri na semana passada |
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
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Folha - "A Orgia Perpétua" completa 40 anos. Qual a diferença entre o autor deste livro e o Vargas Llosa de hoje?
Mario Vargas Llosa - Creio que só uma maior quantidade de cabelo branco (risos). Continuo apaixonado por Madame Bovary.
A principal discussão que o sr. propõe no livro é sobre o realismo de que Flaubert é pioneiro, ele também seria uma invenção. Hoje estão muito banalizados os termos "realismo" e "realismo mágico"?
Claro. Atualmente creio que as pessoas pensam que aquilo que as agrada, que lhes causa alegria, é o "realismo mágico", enquanto "realismo" virou apenas a realidade e o que ela tem de feia.
Escrevi esse texto naquela época pensando num prefácio para uma tradução. Quando vi que estava colocando muito de mim nele, que mexia tanto comigo falar de Flaubert (1821-1880), decidi transformar num livro.
Em que sentido ajudou na sua formação como romancista?
Eu tinha predisposição para o realismo. Podia ler "realismo mágico", mas não gostava de sua vocação naturalista e o excessivo vínculo com a política, que fazia com que as obras às vezes saíssem mal-escritas, sem cuidado com a forma.
Flaubert me ensinou que buscar a perfeição com objetividade, sem afastar-se do real, usando silêncios e deixando coisas não ditas, era uma forma de atingir a beleza de forma mais objetiva, com organização, tanto de formato como temporal. Foi nesse tipo de escritor que quis me transformar. E esse livro ajudou.
E também porque Flaubert não nasceu bom escritor. Ele se construiu, no começo seus textos eram pobres, mas ele buscou a maturidade e a atingiu. Eu também sempre tentei aprender com a literatura.
O sr. tinha muita proximidade com [a agente literária] Carmen Balcells. Sua morte [no dia 20/9] representa o fim de um estilo de agente literário?
Carmen foi mais do que uma agente literária, ela impulsou culturalmente a América Latina. Antes dela, os editores pensavam de forma muito provinciana, limitavam os autores a seus países.
Foi ela quem colocou exigências para que os contratos fossem mais amplos, para que as editoras pensassem de forma mais global na língua espanhola. Obrigou que autores e editores se modernizassem. Sem ela o "boom" latino-americano não teria ocorrido. Além disso, sabia de nossas vidas privadas, dava conselhos, nos advertia pelos maus passos que dávamos (risos).
Há eleições para presidente no Peru no ano que vem, e a filha de Fujimori, Keiko, é uma forte candidata. Como vê?
Espero que os peruanos não sejam tão insensatos. Fujimori representou um período de muito sangue e corrupção.
Ressente-se de não ter vencido as eleições contra ele em 1990?
Não, porque creio que muito do sucesso do Peru na economia hoje tem a ver com propostas que nós oferecemos ao país naquela época: mais economia de mercado, abertura do país para investimentos estrangeiros. É certo que ainda temos sérios problemas de distribuição de renda, mas estamos num caminho de desenvolvimento do qual os peruanos não se arrependem. Entendo isso como um reconhecimento das nossas propostas do começo dos anos 90.
O sr. está acompanhando a crise no Brasil?
Sim, e com grande preocupação. É uma pena que o país tenha decolado tanto e que esse esforço esteja sendo freado agora por causa da corrupção.
O Brasil é o principal exemplo na América Latina hoje de como a corrupção virou o inimigo número um da democracia. Já não são as guerrilhas, as revoluções, as ameaças militares, mas sim a corrupção, apenas.
O que o sr. acha da pré-candidatura de Donald Trump para a Presidência dos EUA? Crê que suas declarações racistas sobre os latino-americanos terão consequências mais graves?
Não acho que vá longe. Ele não diz nada novo. Esse racismo demagogo, medonho, cheio de trevas que ele representa sempre existiu, sempre esteve presente, mas não terá apoio suficiente para seguir despontando numa campanha.
O sr. está terminando um novo romance?
Sim, estou nas últimas revisões, deve sair em espanhol no começo do ano que vem [no Brasil, não há data ainda]. Chama-se "Cinco Esquinas", que é o nome de um bairro muito antigo de Lima e ocorre no final da ditadura Fujimori [fim dos anos 1990], mas não é um romance político.
Trata-se de um thriller em que o principal tema é o jornalismo, mostrando como a imprensa amarela, do escândalo, tem efeitos nefastos.
O episódio recente de sua vida privada que está sendo muito explorado pela imprensa sensacionalista, principalmente da Espanha, ensinou-lhe algo sobre a natureza humana que a literatura não tenha ensinado?
Sim, essa passagem tem me ensinado que o jornalismo sensacionalista pode causar muito dano, porque te expõe de forma cruel, mas principalmente porque desvirtua a realidade, mente.
O sr. teve um problema com o jornal "The New York Times", que disse que era um paradoxo o sr. escrever um livro sobre a sociedade do espetáculo e ao mesmo tempo divulgar sua relação em redes sociais. O que achou?
Isso me chocou muito, porque o que saiu publicado era mentira. Na resenha, dizia-se que eu usava o Twitter para divulgar minha relação, e eu nem tenho conta de Twitter. Mas o pior foi dizerem que eu estava vendendo essas fotos minhas com Isabel, que saíram nas revistas, por 850 mil euros. Isso é totalmente falso.
Me impressiona um jornal desse porte não checar uma informação dessa, tamanho ímpeto de tratar do assunto de forma sensacionalista. Mas eles mesmos me pediram desculpas depois. Essa passagem diz muito sobre o atual estado do jornalismo. Acho que traz uma reflexão não apenas para mim.
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