CRÍTICA
Livro sobre livro traz doçura rigorosa de Ana Martins Marques
Toda visada crítica é redutora diante das múltiplas tramas de seu objeto. Escritores modernos pesam sua técnica de escritores e podem elegê-la como tema, circulando em volta, ou mergulhando nela, habilitando-a como vivência. Ana Martins Marques, em "O Livro das Semelhanças", escreve sobre um livro de poemas, tautologia de quem também promete "não vou escrever cartas de amor / vou escrever cartas sobre cartas".
O livro é tanto o laboratório de suas experiências com as palavras como o reino dos nomes que devem encarnar seus afetos. Não é o caso de lembrar secamente o Mallarmé da frase/axioma "o mundo existe para resultar num livro": na obra de Ana, o livro não parece querer fechar o mundo em si, mas tornar-se um mundo que se apresenta com a propriedade de um espelho que olha para si antes de refletir todas as outras coisas.
Fustigando nomes e escavando vivências pessoais, Ana não se imobiliza numa ou noutra operação: cultua a passagem que empreende uma dupla conversão.
Danilo Verpa/Folhapress | ||
A poeta Ana Martins Marques mesa na Flip 2013 |
Há poemas cuja graça se estreita numa simulação editorial, como "Capa" ou "Índice Remissivo" –peças habilidosas a serem avaliadas nos limites de sua verve. Em outros, o suporte "livro" surge em meio aos périplos da vida, como os amores, constituindo-se um porto onde se pondera a viagem: "Poema Não de Amor" e "Um Dia", por exemplo.
E há poemas, a meu ver os mais admiráveis, em que as palavras e os afetos escavados se apuram reciprocamente num parâmetro rigoroso, quando então a primazia passa a ser a conjunção poética entre a ossatura e a carnalidade. Concentram-se sobretudo na terceira parte do livro, que lhe dá o título e constitui de fato um livro já em si mesma.
REINVENÇÃO
Gosto das várias questões em que os poemas de Ana fazem pensar: o alcance das palavras pinçadas no modo sério-irônico, o manejo da expertise verbal, o motor impudico da enumeração e das anáforas, a leitura e a reinvenção do poema "A Realidade e A Imagem", de Manuel Bandeira. Mas gosto mais de partilhar a consentida curvatura de sua sensibilidade para a poesia mais viva, onde se quebram os copos, onde se ouve "o silêncio / elementar / dos metais", onde se conclui que "cada gato / é o cadáver de um gato".
Os poemas de Ana são estímulos de quem afia as ferramentas e espreita com o rabo do olho vigilante a matéria que aço nenhum é capaz de cortar, mas que se dobra à doçura rigorosa de quem secretamente a esculpe.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira da USP
Livraria da Folha
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