Svetlana Alexievich cria vínculo profundo entre leitores e sobreviventes de Chernobil
O resultado da escolha do Prêmio Nobel de literatura deste ano pode representar uma grande surpresa para a maioria dos leitores brasileiros. Mas para o público americano e europeu a ganhadora é bastante conhecida, pois teve obras traduzidas para diversos idiomas, como russo, inglês, francês, alemão, espanhol, vietnamita, búlgaro, chinês, finlandês, romeno, checo, húngaro, japonês, sueco e até em português de Portugal.
Svetlana Alexievich é ucraniana nascida em 1948 e criada num vilarejo do interior da Bielorrússia. Na juventude, vai para a capital —Minsk— onde se formou em jornalismo. Sua obra literária se nutre bastante da sua atividade de jornalista e repórter. É autora de poemas, ensaios, contos e novelas e até peças de teatro.
Reuters | ||
A jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, vencedora no Nobel, em retrato de fevereiro de 2014 |
Sua obra principal e com a qual terá seu nome permanente na história da literatura universal é o impressionante relato "Oração de Chernobil, Crônica do Futuro", publicada em Moscou em 1997. Pouco tempo depois já estava traduzida em dezenas de idiomas.
A tradução para o francês, de autoria de Gala Ackerman e Pierre Lorrain, alcançou enorme repercussão e despertou o interesse para as demais traduções. A versão inglesa, de Keith Gessen, foi publicada simultaneamente nos Estados Unidos e no Reino Unido, e serviu de mediadora para a versão em outros idiomas.
Em espanhol, foi traduzida por Ricardo San Vicente, lançada no início de 2015 em brochura e na versão digital, com o nome "Voces de Chernóbil - Crónica del Futuro".
Jonathan Nackstrand/AFP | ||
Diferentes traduções da obra de Svetlana Alexievich, exibidos na Academia Sueca |
A explosão nuclear ocorrida numa fábrica de Chernobil em 26 de abril de 1986, precisamente às 1h23, sobretudo suas terríveis consequências para milhões de pessoas, é o assunto central da narrativa. Svetlana entrevistou mais de uma centena de pessoas durante três anos para compor um pungente documento humano em que usa a primeira pessoa. Ela dá voz ao entrevistado, o que estabelece um vínculo profundo com o leitor, que fica preso ao livro até a última página.
A primeira entrevista é com uma mulher, que havia perdido o bebê e o marido, bombeiro que primeiro tentou salvar as vítimas. Ela estava grávida, quando ouviu a notícia. Seu relato em tom emocional cativa o leitor, desde o início: "Eu não sei sobre o quê deveria falar... Da morte ou do amor? Tanto faz... Sobre o quê devo falar? Éramos jovens recém-casados. Na rua, dávamos as mãos, mesmo se fôssemos a uma loja... Eu dizia a ele: 'Eu te amo'".
O prólogo significativamente intitulado "Uma voz Solitária" traz a epígrafe: "Somos ar, não terra", do escritor e filósofo Merab Mamardashivili (1930-1990), considerado o Sócrates russo, que contrasta a fragilidade da condição humana e a indiferença e insensibilidade das autoridades soviéticas. Até hoje os efeitos da catástrofe ainda são sentidos pela população abandonada.
Svetlana nas inúmeras entrevistas que concedeu enfatiza, talvez com algum exagero, que o que aconteceu em Chernobil é muito pior do que os gulags (campos de trabalho forçado soviéticos) e o Holocausto. Para ela, a história do maior acidente nuclear da história ainda está sendo escrita. "Este é um enigma para o século 21", conclui.
GENTIL DE FARIA é professor titular de literatura comparada na Unesp
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