Cadeira de Jubiabá, do romance de Jorge Amado, é devolvida a terreiro
Na década de 1930, Jubiabá era uma figura religiosa de prestígio em Salvador. Em busca de aconselhamento, muita gente ia à sua casa no Alto da Cruz do Cosme, incluindo membros da elite local. Jorge Amado —que não o conhecia pessoalmente— usa sua imagem como inspiração para o personagem de seu livro homônimo, o feiticeiro negro consultado pelo protagonista Antônio Balduíno.
Escrito quando o autor tinha apenas 23 anos, "Jubiabá" despertou o interesse pelo Brasil em gente como o etnólogo Pierre Verger, o fotógrafo Marcel Gautherot, o pintor Carybé e o escritor Albert Camus, que achava a obra —adaptada para o cinema por Nelson Pereira dos Santos— magnífica.
Divulgação/Instituto Geográfico e Histórico da Bahia | ||
A cadeira no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia |
Fora das letras, as coisas não iam tão bem para Severiano Manuel de Abreu, o capitão do Exército que ficou conhecido pelo nome do caboclo que incorporava, Jubiabá. Severiano, que morreu em 1937, dois anos após a publicação do livro, sofreu com a intensificação da perseguição religiosa que assolava a Bahia naquela década. Herança dessa repressão, a cadeira usada por ele em rituais acaba de ser entregue a seus sucessores religiosos, num processo de devolução inédito no país.
A cadeira de mando de Jubiabá— espécie de trono onde os líderes religiosos se sentam durante as cerimônias —foi apreendida pela Delegacia de Jogos e Costumes numa operação comandada por Pedro Veloso Gordilho, outra figura histórica usada como inspiração para Jorge Amado, dessa vez em "Tenda dos Milagres", na pele do policial Pedrito Gordo, que persegue o candomblé por gosto.
"A polícia sabia exatamente o que estava fazendo, não era por ignorância que roubavam essas coisas, era para demonstrar poder", diz o pai de santo Tata Anselmo Santos. "Na época, o povo de santo era acusado de curandeirismo ou de exercício ilegal da medicina. Se tinha alguém no terreiro fazendo um ritual, diziam que a pessoa estava lá sequestrada", explica. "O que a cadeira teria a ver com isso? Levaram porque sabiam que ela simbolizava o poder de Jubiabá", conclui.
Segundo Reginaldo Prandi, professor de sociologia da USP especializado em religiões afro brasileiras, Jubiabá não era um pai de santo no sentido convencional. "Era uma figura meio à parte do sistema rígido do candomblé, que transitava por vários terreiros, mas era muito respeitado e certamente tinha cadeira em várias casas", explica.
Ao contrário de outras peças levadas de terreiros, a cadeira pôde ser devolvida graças à sua identificação: além de trazer o nome do dono talhado em madeira, sua retirada foi registrada na época pelo jornal A Tarde, que trazia uma foto do móvel. "Um raio que tivesse caído na casa, não provocaria tamanho susto", disse o jornal sobre a apreensão da cadeira de Jubiabá no momento em que o religioso se preparava para sentar. Após a ação, em 1921, a polícia entregou o móvel ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).
Reprodução | ||
Fac-símile da capa do jornal 'A Tarde' (1921) narra a apreensão da cadeira do religioso |
Em 2010, Tata Anselmo, que se reivindica bisneto de santo de Jubiabá, soube que a cadeira se encontrava no IGHB e começou a pleiteá-la para que fizesse parte do acervo do terreiro do Mokambo, no Centro de Salvador.
"Nós cedemos a peça em regime de comodato sem prazo definido e ela ficará no memorial do terreiro, que passa a ser responsável por sua conservação", explica Jaime Nascimento, coordenador de cultura do IGHB.
Embora Jubiabá tenha tido 22 filhos biológicos, o órgão entende que eles não teriam direito à cadeira pois ela chegou ao instituto através de uma doação legal. "Claro que a forma como ela foi tirada do dono foi uma violência, mas do ponto de vista do IGHB, a cadeira era patrimônio nosso que cedemos porque entendemos que teria mais valor para a comunidade religiosa do que aqui", explica.
A cadeira é o símbolo máximo de poder no candomblé, tanto que, nos rituais tradicionais, só as lideranças sentam nelas: os demais ficam em esteiras no chão. "Ao requisitar a cadeira, o que esse pai de santo está fazendo é se reivindicando como sucessor legítimo de uma figura lendária, algo que eu não sei se ele é", diz Prandi.
Fundado em 1993, o terreiro do Mokambo está sob tombamento provisório do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e descende do terreiro São Jorge Filho da Goméia. Segundo Tata Anselmo, sua ascendência parte da mameto [como são chamadas as mães de santo do candomblé bantu] Altanira Maria Conceição Souza, a Mãe Mirinha de Portão. Mirinha era filha de santo de João Alves Torres Filho, o Joãozinho da Goméia que era, por sua vez, filho de santo de Jubiabá.
Após a devolução nesta quarta-feira (28), a cadeira passou por um ritual de sacralização e foi colocada no memorial da casa, que está aberto à visitação, mas é preciso agendar pelo telefone (71) 3360-6668.
ESPÍRITA E REMEDIADO
Mas não vá pensando que Jubiabá ficou agradecido pela homenagem prestada por Jorge Amado. "Na época o famoso era ele e o desconhecido era Jorge Amado", diz Tata Anselmo, que considera que o líder religioso foi retratado de modo pejorativo. "Escritor é sempre aquilo, alega licença poética e vai mudando coisas que ficam mal para o retratado, como isso de colocá-lo como uma pessoa cheio de vícios", diz.
"Quando o romance saiu, a imprensa baiana foi atrás de Severiano, que reagiu furioso. Frase dele reproduzida nos jornais: 'Vou fazê-lo engolir esse livro'", conta Josélia Aguiar, biógrafa de Jorge Amado.
Severiano negava ser pai de santo e se dizia espírita. "Essa era uma estratégia de defesa comum na época. O espiritismo estava chegando ao Brasil e cheirava a uma coisa mais embranquecida", afirma Tata Anselmo.
"É possível que fosse espírita mesmo e que não se considerasse pai de santo", replica Prandi. "Muitas pessoas de santo daquela época se envolveram com o espiritismo, o que acabou dando origem à umbanda", explica.
Outra reclamação do retratado era que, no livro, Jubiabá era pobre, enquanto o Severiano da vida real era um sujeito remediado. "Ele até se deixou fotografar dentro de casa, porque o mobiliário era prova de sua bonança", conta Aguiar.
Remediado à época da publicação, Jubiabá morreu sem luxos em Itabuna, na Bahia. Não se sabe grande coisa sobre as circunstâncias de sua morte prematura, aos 51 anos, ou sobre a fase final de sua vida. "Oh, minha filha, era policial entrando com cavalo no meio da sua cerimônia para te chamar de tudo que é nome. Não parece leviano dizer que tenha morrido de tristeza", diz Tata Anselmo.
A lei de liberdade de culto, de autoria do deputado Jorge Amado, só entrou em vigor em 1947.
Leia trechos dos romances:
JUBIABÁ
"Antônio Balduíno não sabia o que esperar de Jubiabá. Respeitava-o, mas com um respeito diferente do que tinha pelo Padre Silvino, por sua tia Luísa, pelo Lourenço da venda, por Zé Camarão e mesmo pelas figuras lendárias de Virgulino Lampião e Eddie Polo. Jubiabá passava encolhido pelos becos do morro, os homens o ouviam com respeito; recebia cumprimento de todos, e em sua porta paravam, de vez em quando, automóveis de luxo. Um dia um menino disse a Balduíno que Jubiabá virava lobisomem. Outro afirmou que ele tinha o diabo preso numa garrafa. Da casa de Jubiabá vinham em certas noites sons estranhos de estranha música. Antônio Balduíno se remexia na esteira, ficava inquieto, parecia que aquela música o chamava. Batuque, sons de danças, vozes diferentes e misteriosas. Luísa lá estava com certeza com sua saia de chita vermelha e de anágua. Antônio Balduíno nessas noites não dormia. Na sua infância sadia e solta, Jubiabá era o mistério." (Extraído de "Jubiabá", de Jorge Amado)
PEDRITO GORDO
"Na cidade, o delegado Pedrito Gordo soltara a malta do terror com carta branca: invadir terreiros, destruir pejis, surrar babalaôs e pais-de-santo, prender feitas e ialorixás. 'Vou limpar a Bahia dessa imundice!' Deu ordens estritas aos soldados da polícia, organizou a escolta de bandidos, partiu para a guerra santa." (Extraído de "Tenda dos Milagres", de Jorge Amado)
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