TV vive 'era de ouro, sexy e violenta como nunca', diz criador de 'Narcos'
Antes a TV era careta, e só queria saber de médicos, policiais e advogados. Hoje, está "sexy e violenta", e deve um bocado dessa ousadia à concorrência de serviços como a Netflix, que expulsou canais de suas zonas de conforto.
O "show-runner" americano Chris Brancato, 53, está otimista. "É o melhor momento da história para escrever na TV. Podemos abordar assuntos de uma forma que seria inimaginável dez anos atrás."
Olha que Brancato começou a carreira num momento bem chinfrim da televisão, Quando todo mundo "de respeito" só queria fazer cinema. ele criou "Barrados no Baile", série dos anos 1990 sobre jovens ricos de Beverly Hills que ajudou a popularizar a expressão "enlatado americano".
Lee Salem Photography | ||
Chris Brancato, criador de "Narcos", e Wagner Moura posam com uma colher de "farinha" |
Brancato estreou em agosto outra cria sua, "Narcos", série da Netflix sobre um jovem endinheirado, só que na Colômbia: o narcotraficante Pablo Escobar. Agora, voltará a uma emissora tradicional dos EUA, a ABC, para "Of Kings and Prophets", "sobre alguém quase tão famoso quanto Escobar": Davi e sua ascensão ao trono de Israel, em 1.000 a.C.
Hoje, fazer televisão virou algo sofisticado. Cinema? Vá em frente, se você gosta de super-heróis e explosões.
"É uma era de ouro para os espectadores", diz Brancato, que vem ao Brasil em novembro. Leia a entrevista abaixo.
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Você deixou "Narcos 2" e voltou a um canal tradicional, ABC, para "Of Kings and Profhets". Foi um passo para trás?
Escrevi a "Bíblia" da segunda temporada de "Narcos". E sempre fui fascinado pelo rei Davi do Velho Testamento, um personagem quase tão famoso quanto Pablo Escobar. E também pela chance de produzir essa história com o orçamento grande da ABC. Filmamos até na Cidade do Cabo (África do Sul).
Também vale notar que a TV aberta, forçada pelo sucesso de Netflix e HBO, está procurando séries com mais coragem, autenticidade e estilo cinematográfico.
Mas o grande motivo foi minha família. Por causa de "Narcos", passei oito meses na Colômbia. Meus filhos estão bem felizes em ter o pai em casa.
Escrever para internet não era o grande barato?
Primeiro, com internet temos uma autonomia em relação aos intervalos. E muito mais liberdade para pôr no ar conteúdos violentos e sexuais. Na TV comercial, há mais limites pois não se quer melindrar anunciantes e também porque ela está disponível para todos, de graça.
Mas dou crédito à ABC por me deixar atropelar alguns limites. Temos uma história do Velho Testamento com muito sexo e violência. Até aqui, nos encorajaram a ser ousados. Claro que, nos EUA, é bem mais fácil se safar com violência do que com sexualidade. Somos uma nação puritana, triste assumir. Por que será que temos taxas de homicídio tão altas?
Séries como "House of Cards" e "Breaking Bad" revolucionaram. E depois, vem o quê?
Com a proliferação de cenais na TV e na internet, todos queremos achar a "próxima grande coisa". Shows têm que ser ousados, bem feitos.
Ninguém mais se contenta com a velha porcaria de sempre. Sabia que "Narcos" seria um sucesso por termos inovado tanto em relação à "TV normal": metade inglês, metade espanhol, gravado todo na Colômbia, um elenco internacional. É o melhor momento para ser um escritor na TV porque nos permitem abordar assuntos que jamais passariam dez anos atrás.
Como a indústria tem se reinventado para ser atraente nas novas plataformas?
Isso vem na forma de séries curtas. No passado, as emissoras queriam 22 episódios por ano, o que forçava técnicas pré-fabricadas. Há dez anos, as séries eram essencialmente sobre policiais, médicos e advogados. Desvende um crime, salve uma vida, ganhe uma causa.
Com o advento da TV paga nos últimos 25 anos, as séries deram uma guinada mais sombria: "The Sopranos", "The Wire" etc. Os personagens tinham falhas de caráter, eram até "não adoráveis".
Na medida em que a internet cresce, os assuntos abordados ficam ainda menos restritivos. Há dez anos, seria impossível pôr 'Narcos' no ar. Nenhum canal queria ter a ver com drogas. Você não veria "Orange Is the New Black", pois ninguém achava que um programa sobre presidiárias funcionaria.
Mesmo "Game of Thrones" era um show bem arriscado de se fazer. E você não assistiria a séries internacionais porque os executivos deduziam que americanos só querem ver a América. Enquanto a TV paga forçou limites do que é aceitável, a internet escancarou as portas para todo tipo de assunto. É uma era de ouro para os espectadores.
Foi difícil convencer seus chefes a fazer uma série metade falada em espanhol?
Pelo contrário. Dissemos ao Netflix que o show poderia ser 30% em espanhol. Os executivos responderam que poderia ser até 50%. Queriam que fizéssemos algo diferente. Bom assim, porque odeio assistir a traficantes latino-americanos falando em inglês com sotaques pavorosos. Claro que, na América Latina, acham que nossos atores têm sotaque ruim. Acho que você jamais pode ganhar.
O sotaque do Wagner foi chacota nas redes sociais...
Wagner trabalhou duro nisso. Estudou na Universidade de Medellín por meses, tinha treinador. Seria impossível que tivesse um sotaque perfeito quando de fato é brasileiro. Meus amigos no México não se incomodaram. Nos EUA, ninguém sequer falou disso. Wagner foi a escolha certa. Pessoalmente, consigo entender. Se um detetive de Nova York fosse interpretado por um britânico, isso me faria contorcer na cadeira.
Ainda que "Narcos" não emule o modelo bem vs. mal, críticos apontaram que americanos são vistos como única rota de salvação para a Colômbia.
Discordo. Acho que a série se centra na ideia de heroísmo em torno de Escobar, e a frustração e até incompetência dos EUA. Queria que o show atraísse a audiência fora da América Latina, por isso escolher o ponto de vista de um agente da DEA. Mas fui bem cuidadoso para evitar a "gringoficação" da história.
Sugerimos que americanos não são John Wayne em cavalos brancos e pistolas brilhantes, mas homens frustrados e moralmente comprometidos que tentavam vencer uma batalha impossível. Inclusive por causa do apetite dos EUA pela cocaína colombiana.
Como você se sente sobre Escobar após ter feito a série?
Ele era charmoso e até sensível. Pode parecer incongruente, mas são qualidades de muitos psicopatas. Me preocupo em glamurizar o narcotráfico, mas ao mesmo tempo essas pessoas existem, e sou um escritor tentando contar uma história.
Quando conheci Wagner, pensei: 'Esse cara é tão adorável que as pessoas vão torcer por Pablo. Num certo sentido, é um dilema sonhado por um escritor. Fazer com que uma audiência assista a um cara que fez tanto mal e sinta uma estranha atração por ele.
Você trabalha há anos na TV, meio conhecido pelo excesso de drogas. O que acha disso após ter feito "Narcos"?
Teve um tempo em que o pó era grande em Hollywood, mas nos anos de Escobar. Agora Hollywood parece tão certinha quanto um banco de investimento nova-iorquino. Há 15 anos não vejo um executivo pedir vinho no almoço! Lembre-se, aqui é Los Angeles, onde você supostamente deve ser magro e fazer ioga. Às vezes desejo que alguns dos meus chefes usem alguma droga e se soltem!
Há várias falhas históricas em "Narcos". (Atenção: spoiler a seguir.) Para citar uma, Escobar nunca matou o líder guerrilheiro do M-19 nem explodiu a Suprema Corte colombiana.
Por isso insisti que a Netflix colocasse um aviso antes dos episódios descrevendo o show como ficção. Não fiz um documentário.
Precisava de licença dramática para capturar o sabor desses tempos, e não de exatidão histórica. Estou ciente de que há muitos erros em "Narcos", mas nunca me propus a fazer a "história real de Pablo Escobar".
O que mudou mais desde que você começou na TV?
No começo dos anos 1990, todo mundo queria fazer cinema. Se trabalhasse na TV, você era um amador. As séries eram bem estúpidas.
Pessoalmente, não ligava. Precisava pagar o aluguel. Agora é o oposto. Na TV, você faz coisas legais, e a maioria dos filmes de estúdio são histórias em quadrinhos. Quem diria.
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