crítica
Com triângulo amoroso, escritor derruba valores da Rússia czarista
Na época em que escreveu e fez publicar o romance "O que Fazer?" (1863), o crítico e coeditor da revista "Contemporâneo", Nikolai Tchernichévski, encontrava-se preso na fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, suspeito de incitar manifestações populares através de seus artigos. Enquanto não se julgara ainda a sua culpa, foi-lhe permitido escrever e designado um censor especial, que nada notou de anormal em seus escritos.
No entanto, uma vez publicada, a obra obteve tamanha repercussão, que o governo do czar Alexandre 2 (1855-1881) imediatamente puniu o censor e condenou Tchernichévski (1828-1889) a amargar o resto de sua vida entre prisões e exílios.
Isso, porém, não deteve o impacto provocado pelas ideias veiculadas na obra, ao contrário, sua influência estendeu-se por todo o século. Se Marx teve o romance em boa conta, para os russos tornou-se leitura obrigatória, inclusive inspirando Lênin mais tarde a escrever o seu próprio "O que Fazer?" (1902).
Mas, o que significa o título? Qual o conteúdo do romance? O romance foi escrito em resposta à obra "Pais e Filhos", de Ivan Turguêniev, que, através do personagem Bazárov, criticava os valores materialistas da nova geração de intelectuais russos, chamando-os "niilistas".
Tchernichévski, na condição de expoente dessa nova geração, decidiu então demonstrar por meio literário a obsolescência dos valores antigos e a inevitável transformação da sociedade, cujas mudanças já em curso, se conduzidas corretamente, poderiam torná-la mais justa e igualitária.
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O escritor russo Nikolay Tchernichévski, autor 'O que Fazer?" |
O autor narra a história do triângulo amoroso Vera Pávlovna, Dmitri Lopukhov e Aleksándr Kirsánov, as aspirações e lutas dos jovens, e as maneiras que encontram de driblar os preconceitos sociais e de combater as perversas formas capitalistas que penetravam na Rússia. Dentre as questões mais caras apresentadas no romance estão a emancipação da mulher e o trabalho como atividade libertadora e educadora.
Embora Tchernichévski deva sua formação às ideias socialistas do utópico Fourier e ao materialismo de Feuerbach e outros, as ideias veiculadas no romance não são mais extraordinárias do que a própria realidade russa daquela época.
O período de distensão política instalado pelo novo monarca Alexandre 2, embora curto, uma pequena fresta na muralha da autocracia, permitira um vendaval de mudanças na sociedade russa: da ampliação do acesso às universidades, fomento ao jornalismo e desenvolvimento das instâncias de opinião pública aos debates semiabertos sobre os mais variados temas —cristianismo, condição da mulher, consequências éticas da visão científica etc.
Muitos sentiam aquelas transformações como eventos que abriam caminho à "transfiguração da vida". A reconstrução ("perestróika", já na terminologia da época) das instituições sociais e estatais, a abolição da servidão, a revisão das concepções metafísicas, éticas e estéticas e a reorganização das relações humanas e hábitos cotidianos deveriam levar à "transfiguração" do indivíduo e ao surgimento do "homem novo".
Moças e rapazes deixavam seus lares para viver em comunidades, clamavam em prol do amor livre e do direito da mulher ao estudo e ao trabalho. Após fundarem o movimento Terra e Liberdade, os jovens, sob influência de Herzen e Bakúnin, passaram a se deslocar para o campo com o intuito de educar e conscientizar os camponeses sobre os seus direitos civis. É nesse espírito que Tchernichévski escreve o seu romance.
Quanto ao título, Tchernichévski o tomou emprestado da indagação que se fez o jovem crítico também materialista Dmitri Píssariev no artigo "Bazárov: o que Fazer?". Como ninguém ousou apontar o caminho para a sociedade do futuro, Tchernichévski o fez pela via literária. Esse seu romance, como uma resposta, se não artística, ao menos política e filosófica a "Pais e Filhos", exerceu enorme influência sobre o desenvolvimento posterior da intelligentsia russa.
A sociedade do futuro imaginada por Tchernichévski gerou controvérsias que prosseguiram nas páginas da literatura ficcional, a exemplo de "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, que retomou a discussão na esfera filosófica e ética.
Com relação aos procedimentos artísticos, o autor recusa as estratégias estéticas e estilísticas de subjetivação do herói e elabora os seus heróis como representações do coletivo. E nesse sentido atua o narrador do romance, ora prevenindo o leitor contra as artimanhas da narrativa ficcional, ora lembrando as hipóteses em que se apoia esta narrativa. Tchernichévski entendia ficção como criação fantasiosa e mantenedora do status quo, e considerava que a literatura deveria retratar a realidade da vida, contribuindo para transformá-la.
SONIA BRANCO é professora de literatura russa da UFRJ e tradutora, entre outros, de "Águas de Primavera", de Ivan Turguêniev (Amarilis,2015), e "Os Cossacos", de Liev Tolstói (Livros da Matriz, 2012)
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