Em novo livro, Gonçalo M. Tavares reflete sobre ascensão do extremismo
"Vivemos na Europa, em outros continentes e no Brasil uma 'luta de luzes'. As pessoas estão desorientadas. Quando estamos no meio do escuro, ficamos ansiosos e qualquer luz pode parecer salvadora. Mas muitas vezes é uma luz terrível, tenebrosa."
O português Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares faz a reflexão enquanto fala à Folha sobre seu novo livro, recém-lançado no Brasil. "Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai" tem um momento de tensão quando os protagonistas estão perdidos nos corredores de um hotel sem eletricidade. Na busca por alguma orientação, enxergam luzes que escapam de portas de quartos.
Pedro Loureiro-9.nov.10/Getty Images | ||
O escritor Gonçalo M. Tavares |
Os quartos exibem nomes de campos de concentração. Tavares está preocupado com a ascensão de grupos de extrema direita, a crise econômica, a reação conservadora aos imigrantes, o terrorismo.
"É preciso ter muito cuidado com esses períodos noturnos. A história da ascensão do nazismo é a história de uma luz aparente que rapidamente se transformou numa noite muito diabólica que não devemos esquecer", afirma.
No atual "combate de luzes", prevê o surgimento de "outras luzes mais sérias, moderadas e democratas que vão vencer essa luz aparentemente salvadora, mas que é uma luz muito perigosa".
Professor e escritor, ele traz nessa obra a história de Marius, que encontra Hanna, uma menina de 14 anos que tem síndrome de Down. Perdida, ela carrega uma caixa com fichas sobre como deve ser cuidada. Diz buscar o pai e ganha apoio na empreitada.
"É uma maneira de cruzar dois mundos: a história do século 20 e essa menina indefesa", fala o autor. "O que talvez tenha dado origem ao livro é a percepção de como alguém com síndrome de Down pode mudar os outros."
FRAGILIDADES
Tavares deu aulas a professores que se preparam para atuar com crianças com deficiências físicas e mentais. Também trabalhou com grupos de dança e de teatro com pessoas com trissomia 21. "Esse contato me fez estar atento à questão. Muitas vezes, alguém com síndrome de Down contagia o espaço, impedindo que as outras pessoas entrem num sistema supercompetitivo. As fragilidades atuam reduzindo tensões", observa.
No livro, ressalta, "há uma espécie de transformação das pessoas que rodeiam Hanna; elas tentam dar o melhor de si". Isso não quer dizer que a obra seja "um elogio a qualquer característica". "Não é um livro didático, é ficção que remete para a parte mais dura do ser humano", enfatiza.
Na avaliação do autor, "Uma Menina Está Perdida..." tem conexão com trabalhos anteriores, mas é diferente. "É mais narrativo, não tem tanta reflexão como outros. Talvez seja o meu livro mais emocional e afetivo, abrangendo questões constantes para mim, como a da violência."
Aos 45 anos, Tavares tem mais de 30 livros publicados em 46 países e em 35 línguas. Alguns textos são enxutos e têm ligações com outros, compondo um conjunto, como na série "O Bairro". "Jerusalém", vencedor do Prêmio Portugal Telecom de 2007, foi avaliado por José Saramago como uma obra "que pertence à grande literatura ocidental".
"Escrevo por uma necessidade física, como se escrever liberasse uma substância da qual meu corpo precisa. Não faço nunca com planejamento intelectual; é uma espécie de impulso", diz. Trafegando pelo romance, poesia, ensaio, teatro, ele começou a redigir muito cedo, mas deixou tudo guardado. Só passou a publicar depois dos 30 anos.
"Foi um estranho instinto de maturidade. Percebi que estava num período de escrita obsessiva. Publicar seria interferir nesse meu mundo autônomo. Queria ter muito trabalho feito, certa maturidade para me sentir seguro. Foi meu período de fundação."
Filho de engenheiro, ele acompanhava o pai nas visitas às obras. "Quando criança, era muito estranho ver que, para construir na vertical, a primeira tarefa era abrir um buraco, fazer o inverso. Só depois de meses a obra chegava ao piso, ao ponto de partida, e começava a crescer. Isso me marcou muito: para fazer uma coisa para ser firme e sólida, não basta pousá-la sobre o chão; é preciso fazer fundações no subterrâneo."
DEIXAR DE MOLHO
Tavares só começou a publicar em 2001, aos 31, quando tinha muito material acumulado. Desse aprendizado trouxe a "metodologia de escrever um livro e deixá-lo sete, oito anos de molho".
"Quando volto [ao texto] é como se fosse outra pessoa; já esqueci completamente do livro e posso me transformar num leitor para decidir o que fazer, mudar, cortar."
E quando foi escrito "Uma Menina Está Perdida..."? Tavares não sabe ao certo. Acha que a primeira versão é de 2002 ou 2003. Até hoje diz que o final do livro o perturba.
"É forte, tem uma potência que me aflige. Não sei o que aconteceu. Na vida, muitas vezes não sabemos os porquês das coisas. A vida é qualquer coisa que começa no meio. Cruzamos com uma pessoa e desconhecemos o seu trajeto. O romance é como um percurso do meio."
Tavares evita tratar de futuros projetos e do que ainda tem na gaveta. "Não tem uma ordem nem uma lógica. Tenho coisas que me dão tranquilidade de sentir que estou fazendo um percurso desde a fundação. Não sinto pressão."
Mesmo assim, diz que tenta manter uma disciplina para trabalhar. Diariamente fica até quatro horas isolado do mundo, sem internet, escrevendo e lendo no seu ateliê. "É a minha sala do século 19; depois volto ao século 21."
Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai |
Gonçalo M. Tavares |
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Nas horas vagas, o escritor gosta de caminhar. Carregando caderninho, caneta e livros, percorre as ruas do centro de Lisboa. De vez em quando para em um café e toma notas. "O que vejo não tem a ver com o que vejo de forma concreta. São gestos, olhares que, de alguma maneira, vão ser transformados. É a energia do ser humano."
UMA MENINA ESTÁ PERDIDA NO SEU SÉCULO À PROCURA DO PAI
AUTOR Gonçalo M. Tavares
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,90 (240 págs.)
Livraria da Folha
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