Festival de Sundance examina a discussão sobre as armas nos EUA
A violência com armas de fogo pode ser um tema incômodo no Festival Sundance de Cinema. Ao longo dos anos o evento ajudou a popularizar —alguns diriam glamorizar— imagens extremas envolvendo armas no cinema —Quentin Tarantino foi incubado e parido aqui.
Mas este ano os programadores de Sundance, profundamente engajados com a liberdade de expressão, e seus cineastas selecionados parecem estar assumindo a postura de que as armas de fogo na vida real deveriam ser mais fortemente policiadas. No mínimo quatro filmes importantes com temas ligados às armas terão sua première mundial no festival, que começou em Park City nesta quinta-feira (21). A intenção é ampliar a discussão sobre as armas de fogo na América.
"Para mim, não é tudo bem que nós, como país, tenhamos decidido que esta carnificina é o preço que temos que pagar para fazer negócios", disse AJ Schnack, diretor de "Speaking is Difficult", curta-metragem documental que começa com o recente massacre de San Bernardino, na Califórnia, e termina com um chamado pelo controle de armas. A documentarista premiada com o Oscar Laura Poitras ("Citizenfour") é uma das produtoras executivas do filme.
Sundance também vai entregar um megafone a Tim Sutton, que escreveu e dirigiu "Dark Night", drama inspirado pelo massacre em um cinema de Aurora, Colorado, em 2012, e a Kim A. Snyder, cujo filme "Newton" examina o trauma contínuo causado à comunidade de Newton, Connecticut, pelo tiroteio na escola primária Sandy Hook em 2012. Parte do documentário angustiante de Snyder mostra quão pouca coisa mudou em relação à reforma da legislação das armas de fogo.
O mais ambicioso dos quatro filmes talvez seja "Under the Gun", com direção de Stephanie Soechtig ("Fed Up") e narração de Katie Couric. Descrito por Sundance como "meticulosamente abrangente e decididamente imparcial", o filme examina por que os legisladores americanos não reagiram com qualquer medida significativa às chacinas seguidas. Couric disse que o filme nasceu quando ela perguntou a Soechtig, depois do massacre de Sandy Hook: "Por que não está acontecendo nada?"
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Imagem do documentário "Under the Gun." |
Juntos, esses filmes —além de outros que farão parte da programação do festival, incluindo "As You Are", drama adolescente envolvendo a disponibilidade de armas de fogo— podem produzir um estrondo sônico cultural. Sundance atrai atenção intensa (1.130 jornalistas de 17 países cobriram o festival em 2015) e, sob muitos aspectos, determina quais filmes independentes serão vistos nos cinemas e na TV pelo resto do ano.
"Uma Verdade Inconveniente", de Davis Guggenheim, mostrado primeiramente em Sundance em 2006, empurrou as mudanças climáticas para o primeiro plano das preocupações públicas. "A Guerra Invisível", sobre o estupro nas Forças Armadas americanas, teve impacto rápido sobre a política governamental depois de estrear em Sundance em 2012.
O festival vai apresentar seus filmes contra o pano de fundo de uma corrida presidencial em que a violência com armas de fogo está alimentando um debate partidário divisor, com os candidatos democratas pedindo mais controle e os republicanos, de modo geral, afirmando que a adoção de novas medidas não resolveria o problema dos massacres e, ao mesmo tempo, prejudicaria os cidadãos que possuem armas e obedecem as leis. Os organizadores do festival têm consciência de como o tópico é politicamente delicado.
"Temos orgulho de chamar a atenção para o que artistas independentes têm a dizer, a como eles estão reagindo ao que está acontecendo na consciência pública", disse Robert Redford, que fundou o festival mas se nega a participar da seleção dos filmes. "Mas quero deixar claro: não somos nós que defendemos qualquer coisa. São os artistas que estão chamando a atenção para áreas particulares."
Entrevistado pelo telefone, Redford disse que os filmes do festival deste ano que tratam de armas o levaram a conversar com John Cooper, o diretor de Sundance. "Falei a ele: 'Você sempre postulou que não devemos defender posições, mas parece que pode ter feito isso em relação às armas'", disse Redford. "A resposta dele foi: 'Não somos nós. São os cineastas.'"
Falando separadamente, Cooper disse que entre os 12.793 filmes candidatos a ser exibidos no festival 2016, um número "extraordinário" tratava das armas.
"O cinema independente sempre procurou provocar discussões, mas os documentaristas, em especial, estão adotando técnicas de fazer cinema que tornam seus filmes mais interessantes. Mais pontuais."
"Newtown" não foi feito com a intenção de defender uma posição, disse uma de suas produtoras, Maria Cuomo Cole (irmã do governador de Nova York, Andrew Cuomo), cujos créditos incluem "A Guerra Invisível" e "Living for 32", curta documental sobre o tiroteio de 2007 na universidade Virginia Tech. O objetivo teria sido mostrar o processo de luto, ou "o que acontece no longo prazo depois de as redes de TV voltarem para casa".
A produtora disse que vê Newton como uma metáfora de toda a América, considerando o número de cidades afetados por chacinas. "São comunidades que continuam traumatizadas."
"Newton" põe o espectador cara a cara com pais ainda devastados —e crianças que sobreviveram à chacina.
Já "Speaking is Difficult" quer motivar os espectadores, disse AJ Schnack, ao mostrar algo que virou um ciclo repetido no caso dos massacres com armas de fogo: carnificina e depois indiferença. Vinte e cinco incidentes ocorridos ao longo de cinco anos são relatados em rápida sucessão; gravações de telefonemas para os serviços de emergência são tocadas ao mesmo tempo em que se veem imagens plácidas dos locais dos massacres, vistos como estão hoje (por exemplo, o supermercado no Arizona onde a então deputada Gabrielle Giffords foi baleada em 2011).
Schnack se apressou para incluir no filme dois incidentes ocorridos depois de ele ter entregue a produção à apreciação de Sundance: o massacre de dezembro em San Bernardino, onde morreram 14 pessoas, e um incidente no Colorado em novembro, que deixou três mortos.
O título de "Speaking is Difficult" vem de um chamado feito ao Congresso por Giffords em 2013 por leis mais rígidas sobre o porte de armas. Depois do festival, o filme estará disponível pela plataforma on-line de curtas documentais Field of Vision, criada em parte por Poitras.
Apesar de ser um drama fictício, "Dark Night" deixa sua mensagem muito clara. Ambientado na Flórida nos dias que antecedem um acontecimento ao estilo do que ocorreu em Aurora (o filme termina com o assassino entrando num cinema), "Dark Night" mostra um grupo de pessoas muito diferentes empurradas —pela pobreza, por pressões sociais, pelo serviço militar, por videogames violentos— ao limite do que suportam. Qual delas será o atirador?
"Poderia ser qualquer uma dessas pessoas, mas, como parece acontecer na vida real, sempre está claro se você realmente presta atenção", disse Sutton.
Helene Louvart | ||
Ciara Hampton em cena de "Dark Night" |
Em uma cena espantosa, um rapaz com um fuzil de assalto passa andando ao lado da janela da sala de seus vizinhos, em plena luz do dia; as pessoas dentro da casa estão ocupadas demais assistindo à TV para notar.
"Eu queria que o filme fosse uma espécie de documento desse tempo", disse Sutton. "Não é um filme de terror, mas ele precisa assustar você emocionalmente."
"Under the Gun" está sendo mantido em sigilo antes de sua estreia, no domingo (24) —o pedido do "NYT" de assistir ao filme para este artigo foi negado. Mas Soechtig destacou que quis fazer um filme equilibrado, que, com sorte, possa fazer sentido tanto para os puristas da Segunda Emenda constitucional (que protege o direito de posse e porte de armas) quanto para quem defende um controle maior sobre as armas de fogo.
"Será que há mais terreno em comum do que fomos levados a pensar?", disse Soechtig.
Katie Couric refletiu: "Espero pelo menos que este filme suscite uma discussão nova e mais inteligente."
Tradução CLARA ALLAIN
Livraria da Folha
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