ANÁLISE
Lei Rouanet é falha, mas com anuência do Ministério da Cultura
Leo Lemos/Folhapress | ||
O ministro da Cultura, Juca Ferreira |
O ministro tem razão. Juca Ferreira, titular da pasta de Cultura, reitera, a cada entrevista, suas críticas à Lei Rouanet. Em entrevista à Folha no começo de fevereiro, logo após o TCU determinar o veto de verba de isenção fiscal a projetos culturais financeiramente autossustentáveis, ele disse que "ela não é um mecanismo saudável para ser o principal instrumento de fomento à cultura" por ser "muito permissiva".
O discurso foi repetido na imprensa nos últimos dias, após a polêmica criada em torno do projeto do livro de Claudia Leitte. Publicada no "Diário Oficial" no dia 16, gerou reclamações a aprovação concedida pelo MinC à produtora Ciel para captar, via isenções fiscais, R$ 356 mil para o livro da cantora.
Segundo texto da produtora aprovado, o livro contemplaria entrevista, letras e partituras, além de fotos exclusivas e a biografia da cantora, em português e inglês. A tiragem seria de 2.000 exemplares –os verbos estão no futuro do pretérito porque a produtora desistiu do livro.
O ministro chegou a afirmar que vetaria o projeto numa ação "ad referendum" –ou seja, isoladamente, contrariando o parecer favorável e a avaliação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura.
Seria uma ação de exceção. À parte julgamentos subjetivos sobre o valor artístico da obra –o que, por lei, não cabe ao MinC–, o projeto preenchia todos os requisitos técnicos para gozar do fomento.
Karime Xavier/Folhapress | ||
A cantora Claudia Leitte |
Além disso, o livro seria distribuído gratuitamente, ao contrário de diversos outros projetos que, além da verba de isenções fiscais, geram receita aos produtores –e que nunca tiveram a interferência do ministro.
Se por um lado o projeto da cantora não feria a lei, por outro era eticamente questionável. Artistas renomados, com carreiras financeiramente sustentáveis, não deveriam usufruir de uma legislação criada para fomentar projetos culturais que não se pagam. A legislação, que fará 25 anos em dezembro, caducou tanto pela obsolescência quanto pelas investidas vorazes dos departamentos de marketing de grandes empresas.
FERRAMENTAS
Há, também, um terceiro elemento que, ainda que passivamente, atuou para corromper a Rouanet: o próprio MinC, que não atualizou ferramentas e processos que dão sustentação à lei.
Na mesma entrevista concedida à Folha no começo do mês, o ministro questiona retoricamente: "Para que remendos [na lei atual] se podemos aprovar um projeto melhor?". É uma clara referência ao ProCultura, programa que promete descentralizar as verbas de fomento a ações culturais e que é xodó da administração de Ferreira.
O raciocínio explica por que, em 2015, a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura colocou em consulta pública a instrução normativa 1/2013, que estabelece procedimentos para a aplicação da lei, por exemplo, os itens que devem estar contidos e ser avaliados em uma proposta.
Sendo a instrução normativa um ato administrativo, sem o trâmite no Congresso, como ocorre com outros aparatos legais, o próprio MinC, o órgão que mais conhece as brechas da Rouanet, poderia ter redigido novo texto e posto fim a distorções. Não o fez: evocando uma suposta democracia, conclamou a sociedade a ajudar na redação.
O problema é que a sociedade, de forma geral, desconhece os meandros da Rouanet e a contribuição à nova instrução normativa se restringe a produtores culturais que, muitas vezes, deixam o interesse privado se sobressair ao interesse público.
Também em 2015, o MinC retificou edital para convocação de novos pareceristas –especialistas que, após análise e emissão de parecer técnico sobre projetos culturais, aprovam ou não as propostas em primeira instância. O órgão poderia ter restringido a participação a produtores que não tivessem projetos ativos na Rouanet, a fim de evitar conflito de interesse e garantir a lisura do processo.
Afinal, se dois produtores podem enviar propostas e têm o poder de analisar projetos, quem garante que não haja um acordo de cavalheiros para que um aprove o projeto do outro? Apesar da indagação óbvia, o MinC novamente se omitiu e, hoje, temos pareceristas que podem estar atuando dos dois lados do balcão.
O ministro tem razão. A Lei Rouanet é permissiva demais e refém das empresas. Mas, por parte do MinC, cabe um mea-culpa, e não só críticas.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade