análise
Caio F. falava a verdade mesmo ao escrever relatos inventados
A saber: a data de hoje é dia de agradecer. A vida que ele nos deu. O sonho que ele, em nós, recuperou. Caio escreveu histórias ao pé do ouvido. Falando consigo, falou comigo
Quer saber qual o barato? Caio Fernando Abreu não é um escritor chato. Moroso nem majestoso. Anêmico nem acadêmico. Nada frígido. É um escritor fácil, rápido. Escritor papo reto com a moçada. À frente, sempre. À vera. Daí ele estar vivo até hoje. Depois de 20 anos de sua morte, sobrevive. Nas redes. Nas ilhas sociais é curtido. Querido e compartilhado. Quem disse que escreveu "Morangos Mofados"? Seus morangos são silvestres. Fresquinhos.
Eu me lembro. Eu era adolescente, ainda no Recife. Chegaram-me às mãos os seus contos. Cheios de verdade íntima. Que era a minha. A gente lê Caio e encontra um parceiro no desejo. Ele é dono de uma alegria leve. De uma homossexualidade melancólica até, mas sem medo. Ele nos toca devagarinho. Em uma prosa que faz parar o tempo, o fôlego. Literatura sem compostura. É o tipo de escritor para iniciar leitor. No sexo, na defesa de seus direitos, no amor.
A saber: a data de hoje é dia de agradecer. A vida que ele nos deu. O sonho que ele, em nós, recuperou. Caio escreveu histórias ao pé do ouvido. Falando consigo, falou comigo. Havia sinceridade em seus relatos. Mesmo que fossem inventados, eram nossos aqueles espelhos. O sofrimento, o tesão guardado, o beijo. Aprendi a beijar com o Caio.
Bel Pedrosa/Folhapress | ||
O escritor Caio Fernando Abreu durante a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1994 |
Sempre falo: escritores de verdade pegam em nossa mão, nos ajudam a atravessar a esquina. Quem lê Caio, cedinho, não precisa de propaganda do Boticário. Publicidade, nunca. É a literatura quem nos ensina. Educa, descortina.
Meu perfume é Jean Genet, Pedro Lemebel, João Silvério Trevisan, Darcy Penteado.
Vi um dia Caio, de passagem pela rua. Eu já vivendo em São Paulo. Meu ônibus veloz e ele, ali, parado, esperando o sinal abrir. Pensei em descer do ônibus, correr. Inventar um oi, alô. Dar um abraço que fosse. Do povo pernambucano para o povo gaúcho. Meus músculos fracos, minha alma forte, em flor. Tomaríamos um porre no bar Ritz. Pediria para ele me apresentar o Parque Trianon. Vim para São Paulo por causa de uma paixão, sabe? Se sou o que eu sou, como cidadão e escritor, você muito me ajudou.
Não importa. É esta a imagem que Caio nos passa: de irmão, amigo confidente. De parente nada coxinha como nossos parentes. Nada careta. Gente boa-praça. Acabei acompanhando-o só de longe. Vi, no jornal, quando ele caiu doente de Aids. Escreveu uma série de crônicas-testemunhos, no "Estado de S. Paulo", intitulada "Cartas para Além dos Muros". O primeiro escritor a sair da sombra sobre o assunto, creio.
Nos volumes de contos, crônicas. Em sua vasta produção que inclui romance, poemas, peças de teatro. Nas cartas e cartões postais que deixou, Caio Fernando Abreu sempre foi epifânico.
Apaixonado e transparente. Agarrou-se em nós este mito. Em tempos tão sombrios, é redentor que ele ainda esteja presente. É, de alguma forma, uma onda de liberdade que se espalha. Quem chega aos seus livros sai de lá decidido para a longa jornada. Caio, companheiro, venceu a batalha.
MARCELINO FREIRE é escritor e curador da Balada Literária, que vai homenagear Caio Fernando Abreu neste ano. Ele ganhou o Prêmio Machado de Assis de 2014 pelo romance "Nossos Ossos" (Record)
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