crítica
'Best of Enemies' traz episódio clássico das guerras culturais
Nesta época em que a polarização ideológica chega às fronteiras da histeria, voltar às origens ajuda a iluminar o fenômeno. "Best of Enemies" (melhores inimigos) é um documentário que focaliza os debates em que se engalfinharam, durante onze noites na TV norte-americana, os intelectuais William F. Buckley Jr. (direita) e Gore Vidal (esquerda).
Embora as "guerras culturais" tenham longa história, a matriz de sua versão atual aparece com nitidez nesse confronto que influenciou gerações de discípulos e mudou a maneira de a TV mostrar a política.
Corria o ano incendiário de 1968. Em agosto, os partidos Democrata e Republicano fariam convenções para escolher os candidatos a presidente. Amargando um terceiro lugar na audiência, a rede ABC resolveu fazer uma cobertura enxuta e heterodoxa. Imaginou-se que uma discussão entre dois polemistas agressivos, algo inédito na TV, atrairia público.
Buckley foi contratado primeiro. Erudito e católico, era um crítico feroz do "establishment" universitário progressista, que havia frequentado, e um simpatizante do macarthismo e da segregação racial no sul. Criou um periódico de ideias, "National Review" (1955), espécie de guia do conservadorismo americano no apogeu da Guerra Fria (1945-1989).
A emissora pediu sugestões de oponente a Buckley, que cogitou Norman Mailer, outro intelectual de esquerda, mas de quem sempre foi amigo. Vetou de antemão apenas um nome, o do escritor e ensaísta Gore Vidal, com quem já se digladiara pela imprensa e trocara processos judiciais. Mas a ABC queria Vidal. Segundo Robert Gordon, um dos diretores do documentário (o outro é Morgan Neville), cada contendor foi persuadido pelo equivalente hoje a US$ 70 mil (R$ 273 mil) –e pela fama.
ÓDIO
O documentário reconstitui os antecedentes e bastidores, claro, mas o melhor são os trechos pinçados dos debates. Ao espectador de hoje, pelo menos duas coisas chamam a atenção e parecem quase bizarras.
Ambos tinham 43 anos; talvez por causa do espírito de 1968, porém, ostentam um ar estudantil e formam uma dupla atraente, ao menos até abrirem a boca. O que era anunciado como um alto intercâmbio de ideias descamba em minutos para uma troca de ofensas pessoais expressas num tom de escárnio venenoso raramente visto.
Divulgação | ||
Gore Vidal e William F. Buckley em cena do filme 'Best of Enemies' |
Diversos depoentes que figuram no filme repetem que o debate teve substância, apesar da aspereza. Mas folheando-se a íntegra é possível constatar que grande parte do tempo –eles matraqueavam 15 minutos cada noite na frente de um mediador omisso, às vezes perplexo– é dedicada a um torneio de perfídias cheio de insinuações sexuais impublicáveis.
O ápice, que se tornou "meme" dos debates, é quando Vidal diz a Buckley que "cale a boca!", acrescentando que o outro é um "criptonazista", para ouvir de um apoplético Buckley nada menos que "sua bicha!" (you queer!) e vou "socar essa sua maldita cara até você ter de aparecer engessado!".
Sem dúvida havia um ódio autêntico, visceral, entre esses dois (quando Buckley morreu, Vidal deu declarações saudando a entrada do rival no inferno), o que dá um triste testemunho de que a inteligência nem sempre é suficiente para o esclarecimento. Mas o perturbador é a perfeita consciência que ambos exalam de estar fazendo um show em que o público quer ver sangue –ao menos em sentido figurado. Às vezes eles parecem congratular-se pela qualidade do espetáculo.
O outro aspecto notável é assistir na TV a tamanha exibição de pedantismo no tom falsamente entediado, na soberba da atitude estudada fingindo displicência, no próprio sotaque anasalado que escande as sílabas finais à maneira professoral –traços comuns aos dois debatedores, o que expõe o substrato do mesmo estamento social sob a lonjura aparente das posições antípodas.
Buckley e Vidal seguiram processando-se vida afora. Vidal foi candidato a deputado por Nova York em 1960 e a senador pela Califórnia em 1982, Buckley foi candidato a prefeito de Nova York em 1965. Nenhum se elegeu: o povo pode cometer muitos erros, mas não todos.
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