CRÍTICA
Inquietante, peça 'Cinderela' recria conto de fadas com originalidade
Cici Olsson/Divulgação | ||
Cena de 'Cinderela', do francês Joël Pommerat |
Uma peça pode ser moderníssima, inquietante e mesmo bizarra, sem entretanto deixar o espectador perdido e perplexo. Foi o que mostrou o diretor francês Joël Pommerat com uma original adaptação da história de Cinderela, que abriu maravilhosamente a 3ª MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, nesta quinta-feira (3).
A peça, uma coprodução do Teatro Nacional de Bruxelas e da companhia de Pommerat, a Louis Brouillard, volta ao cartaz hoje, às 16h, no Auditório Ibirapuera.
Crianças de uns dez anos para cima podem assistir a "Cinderela" sem problemas. As legendas contaram com ótima tradução, que não evita os diversos palavrões pronunciados pela madrasta -e também pela fada madrinha.
Esta personagem, vivida por Noémie Carcaud, responde pelos momentos mais engraçados. Fumante, saturada do próprio ofício, e muito atrapalhada na hora de fazer as mágicas, a fada quase desiste de ajudar uma Cinderela (Deborah Rouach) que parece plenamente resignada a seu destino de humilhações e trabalhos domésticos.
Aqui intervém o lado mais estranho e sombrio da adaptação. Sem fugir aos estereótipos dos contos de fadas (a coitadinha, o príncipe, as rivais malvadas), os personagens da peça surgem com os mais estranhos comportamentos e tipos físicos.
Cinderela é uma espécie de anãzinha barriguda, pronta a entregar-se a um príncipe não muito diferente dela. Sofre, além disso, de uma obsessão com a mãe já morta. Acredita que, se não pensar na mãe a cada minuto, irá precipitá-la na morte eterna.
Conta, portanto, com um despertador eletrônico que deve lembrá-la constantemente de seu dever imaginário. Caso se distraia, Cinderela se julga merecedora de punições -donde sua submissão às ordens da madrasta.
Sua sorte conquista facilmente a simpatia do espectador -que não deixa de perceber, contudo, o completo e arbitrário pesadelo psicológico que Joël Pommerat, não apenas diretor como autor do texto, criou nesse espetáculo.
A virtude modernista do estranhamento não contradiz, assim, o hábito tradicional que temos de torcer pelo final feliz. Outra proeza do texto está em recorrer ao velho arsenal da psicanálise (obsessão, conflitos edípicos, masoquismo) sem que tudo pareça óbvio e previsível.
O cenário, a música e os figurinos lembram os anos 1970. Ao mesmo tempo, um tema clássico dos contos de fadas (a rainha que sempre quer ser a mais bela, por exemplo) ganha aqui sua atualidade com a preocupação, generalizada nas sociedades contemporâneas, de investir nas tecnologias do embelezamento e da eterna juventude.
Mais discreta é a alusão do diretor ao maior problema social da Europa de hoje, a crise da imigração. Uma voz em off, com sotaque nada europeu, dá início à narrativa de "Cinderela". A personagem, transferida ao cenário urbano, torna-se a faxineira imigrante que, aqui como na França, amarga o trabalho pesado e dorme num quartinho.
Mas somente a sua voz -não seu corpo nem sua etnia- é dada a conhecer ao público: sutileza do diretor, que mantém o cerne de sua história como que exilado do palco. Mas o que, com esplêndidas manipulações de luz, aparece em cena já é complexo e irônico a mais não poder.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade