CRÍTICA
Norte-coreana narra prisão do pai, estupro da mãe e a fuga do país
Quando chegou à Coreia do Sul, em 2009, a norte-coreana Yeonmi Park tinha mais que algumas histórias para contar.
Passou fome em seu país de origem, viu o pai ser preso por contrabando e a mãe ser estuprada, caiu na rede de tráfico humano na China, teve que entrar ela mesma no negócio do tráfico –vendendo a própria mãe por cerca de US$ 2,8 mil– e atravessou um deserto gelado para, finalmente, estar livre.
E, passado tudo isso, ela tinha apenas 15 anos.
A trajetória de Yeonmi, hoje com 22 anos e estabelecida em Nova York, foi relatada no livro "Para Poder Viver - A Jornada de uma Garota Norte-Coreana para a Liberdade", escrito com a jornalista Maryanne Vollers e lançado esta semana no Brasil pela Companhia das Letras.
Yeonmi vem de um dos países mais fechados e excêntricos do mundo, que desperta internacionalmente receios e revoltas pelo que acontece lá dentro —"um inferno sobre a Terra", segundo descreve a garota. Todo esse mistério torna os detalhes do cotidiano norte-coreano descritos por ela um grande atrativo do livro.
Por exemplo, a fome, ponto central na decisão de escapar da Coreia do Norte.
No interior onde vivia, Yeonmi viu a família não ter o que comer mais de uma vez e, no livro, são repetidas as referências à comida. "Muitas crianças gostam de perseguir libélulas; quando eu as pegava, eu as comia."
Se a pobreza do país não chega a ser uma revelação, há trechos do livro que reforçam a imagem de país estranho.
"O governo lançou uma campanha para preencher a lacuna de fertilizantes com um recurso local e renovável: dejetos humanos e animais. Todo trabalhador e todo estudante tinha uma cota a preencher ("¦) 'Lembre-se de não fazer cocô na escola!', minha tia me dizia."
Para ter uma renda extra, o pai de Yeonmi contrabandeava produtos entre a China e a Coreia do Norte. O comércio paralelo levou-o à prisão, mas deu à família condições de vida um pouco melhores que as dos vizinhos.
Já na Coreia do Sul, Yeonmi atribuiria à mãe o apelido de a "Paris Hilton" da Coreia do Norte —mas, segundo ela, as bolsas "de marca" eram falsificações chinesas baratas.
FUGA
O livro supre a curiosidade do leitor sobre a propaganda norte-coreana. As lições de matemática da escola não somavam laranjas, mas "bastardos americanos". "Se você matar um bastardo americano e seu camarada matar dois, quantos bastardos americanos mortos você terá?"
A única religião, conta Yeonmi, era a adoração aos líderes. Essa devoção estava tão impregnada que, apesar de todo o sofrimento relatado, ela diz que só conseguiu odiar o ditador Kim Jong-il bem depois de deixar o país.
Em 2007, aos 13 anos, escapa da Coreia do Norte com a mãe para a China. É o começo da fuga que vai durar dois anos, até que chegam à Coreia do Sul, onde finalmente são acolhidas como cidadãs.
Na China, há comida em abundância, mas a vida não fica mais fácil. A mãe é estuprada pelo atravessador, que, na verdade, queria atacar a filha.
O governo ditatorial norte-coreano e a imprensa estrangeira apontaram inconsistências nos relatos de Yeonmi desse período, inclusive sublinhando o fato de ela ser pouco mais que uma criança quando deixou seu país. No livro, ela explica sutilmente os pontos criticados.
O livro, por vezes, carrega a mão na dramaticidade, o que não desanima a narrativa de uma história fora do comum. Já livre, Yeonmi se viu frente a angústias mais conhecidas do resto do mundo. "Eu nunca soube que a liberdade poderia ser uma coisa tão cruel e difícil."
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LEIA TRECHO
"À medida que passavam as horas, ia ficando cada vez mais frio, e comecei a duvidar que qualquer um de nós fosse conseguir. Pensei no que seria morrer ali no deserto. Alguém acharia meus ossos ou marcaria minha sepultura? Ou eu estaria perdida e esquecida, como se nunca tivesse existido? Dar-me conta de que estava completamente só neste mundo foi a coisa mais assustadora que senti na vida, e a mais triste.
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Também comecei a odiar o ditador Kim Jong-il naquela noite. Antes disso, não tinha pensado muito nele, mas agora eu o culpava por nosso sofrimento. Finalmente me permitia pensar coisas ruins sobre ele, porque mesmo se pudesse ler minha mente, provavelmente eu ia morrer ali, de qualquer maneira. O que ele poderia fazer, me matar mais uma vez?"
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