crítica
Comédia sem cinismo mostra fé de irmãos Coen em cinema artesanal
Ao longo de sua carreira, os irmãos Coen foram muitas vezes acusados de criar pastiches em forma de filme – imitações cínicas e calculadas de uma série de obras e gêneros.
Por ironia, com o passar do tempo, os "imitadores" tornaram-se dois dos cineastas mais imitados do cinema contemporâneo –processo parecido ao que ocorreu com Quentin Tarantino.
Agora que eles ultrapassaram a respeitável marca dos 20 anos de carreira e passaram a entregar obras progressivamente maduras, é possível receber seus filmes com outro olhar, talvez menos acusador.
Em "Ave, César!", por exemplo, o pastiche –que está escancarado– pode enfim ser encarado como homenagem carinhosa, não imitação sarcástica. O filme, aliás, nada mais é do que um pretexto encontrado pelos Coen para brincar respeitosamente com uma série de gêneros clássicos.
Na Hollywood dos anos 1950, Edward Mannix (Josh Brolin), chefe do estúdio Capital Pictures, gasta mais tempo tentando livrar suas estrelas de escândalos do que lidando com questões artísticas e financeiras.
Sua competência nessa tarefa é colocada à prova quando o astro Baird Whitlock (George Clooney) é sequestrado por uma misteriosa organização em meio às filmagens da superprodução bíblica "Hail, Caesar!".
Esse fiapo de história é o aspecto menos interessante e menos relevante do filme –embora ele permita uma brincadeira saborosa com a ideia paranoica de que havia comunistas infiltrados em Hollywood.
Scarlett Johansson como a atriz DeeAnna Moran em 'Ave, César' |
Na verdade, a trama é apenas uma desculpa para que os irmãos Coen possam realizar o desejo de revisitar filmes e figuras emblemáticas do cinema hollywoodiano.
"Hail, Caesar!" foi claramente inspirado em "Os Dez Mandamentos" –o clássico bíblico dirigido por Cecil B. DeMille em 1956.
Antes do sequestro de Baird Whitlock, a maior preocupação de Mannix era fazer um filme que não ofendesse nenhuma religião –o que rende uma cena impagável de uma reunião do executivo com um padre, um pastor, um rabino e um sacerdote ortodoxo.
Na linha dos filmes estrelados por Esther Williams, há o número musical na piscina com DeeAnna Moran (Scarlett Johansson), atriz que engravida de um homem casado e para quem Mannix precisará encontrar um marido.
Há também um musical com marinheiros, protagonizado por Burt Gurney (Channing Tatum), dançarino vigoroso à moda de Gene Kelly.
Em um erro flagrante de casting, Hobie Doyle (Alden Ehrenreich), um astro do faroeste, é escalado para participar de uma comédia sofisticada dirigida por Laurence Laurentz (Ralph Fiennes) –figura que parece calcada na do alemão Ernest Lubitsch.
Para que o caipira Hobie ganhe um ar mais cosmopolita, Mannix inventa um namoro dele com uma estrela latina que lembra Carmen Miranda.
É evidente o prazer com que os Coen criam as cenas desses filmes dentro do filme –um prazer que é transmitido a todos que se educaram no audiovisual vendo essas produções no cinema ou na TV. O olhar da dupla de diretores para esse universo parece estar colado ao de Edward Mannix.
Em uma subtrama do filme, o chefe do estúdio recebe uma proposta irrecusável para se tornar presidente de uma companhia aérea. Ali ele não precisaria cuidar de estrelas mimadas, controlar diretores arrogantes ou se preocupar com a ameaça da televisão.
Mas Mannix –um católico que confessa ao padre fumar escondido da mulher– resiste à tentação do caminho mais fácil porque se viciou em cinema. Como o cigarro, ele simplesmente não consegue largar.
Por meio da figura de Mannix, os irmãos Coen fazem em "Ave, César!" uma profissão de fé no cinema. E, em particular, à possibilidade de fazer um cinema artesanal dentro de um modelo industrial. Como era na Hollywood dos anos 50, como é na obra da dupla.
Pode haver pastiche em "Ave, César!". Mas cinismo não há.
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