crítica
Junção de banal com trágico dá intensidade a 'Fogo no Mar'
Há menos de um ano, a foto do cadáver do garoto sírio Aylan Kurdi, de três anos, numa praia na Turquia correu o mundo, provocando comoção e indignação nas redes sociais, antes de mergulhar no esquecimento. O documentário "Fogo no Mar" evita esse tipo de sensação que inflama e logo se extingue.
O realizador italiano Gianfranco Rosi busca outras estratégias para representar o destino de refugiados anônimos que nem sequer têm direito à imagem mórbida.
A opção de filmar em Lampedusa explica-se pela singularidade dessa porção avançada da Itália. Localizada a meia distância da costa da Tunísia e da Líbia, a ilha converteu-se em uma balsa salva-vidas para os refugiados que partem da África em embarcações precárias.
"Fogo no Mar" registra a rotina de naufrágios, a chegada de milhares de pessoas em péssimas condições, a mortandade, a catástrofe humanitária. Parece, contudo, evitar o tema mais espinhoso dos efeitos políticos e sociais dessa imigração em massa.
Em paralelo à tragédia, Rosi filma o cotidiano de alguns habitantes.
Divulgação | ||
Cena do documentário 'Fogo no Mar' |
O garoto Samuele perambula pela natureza, caça com estilingues, inicia-se no prazer e no desconforto da pesca, que provavelmente será seu destino profissional. Sua avó cuida dele, arruma a casa, borda. Outros cuidam de seus afazeres e, quando precisam, o médico os atende com sabedoria e boa vontade.
"Pobres coitados", exclama a avó ao escutar no noticiário sobre mais um naufrágio com desparecidos.
Rosi evita a falsa dialética de contrapor a relativa segurança dos habitantes italianos da ilha à má sorte dos pobres coitados e assim validar o discurso dos que só veem os riscos dessa "invasão".
A costura do normal ao excepcional, do banal ao trágico agrega intensidade a "Fogo no Mar" sem que se perceba de imediato como o filme expõe o abismo que diferencia a economia e a política da vida de um europeu da de seus milhões de vizinhos.
Não se trata de denunciar ou de distribuir culpas, tampouco de proclamar argumentos simplistas a favor ou contra ou de promover a indignação.
Em vez de discurso, "Fogo no Mar" mostra. Pode parecer inócuo se comparado à foto do corpo inerte de Aylan Kurdi. Seus efeitos, no entanto, são mais duradouros.
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade