crítica
Mais artificial que 1º King Kong, novo de Spielberg não para em pé
Autointitulada capital mundial do cinema de autor, Cannes tem paradoxalmente abraçado Steven Spielberg em suas mais comerciais produções. Foi assim em 1982, com "E.T. - O Extraterrestre" e há oito anos com "Indiana Jones e O Reino da Caveira de Cristal". A fórmula se repetiu com a projeção anteontem fora de concurso de "O Bom Gigante Amigo".
Em busca de um megassucesso de meio de ano, três marcas se combinam: a Disney, o próprio Spielberg e o escritor britânico Roald Dahl (1916-1990), autor de clássicos de bom retrospecto tanto nas livrarias quanto nas bilheterias ("A Fantástica Fábrica de Chocolate"; "O Fantástico Senhor Raposo"), cujo centenário é comemorado neste ano. Aguaram o chope da festa da efeméride.
"O Bom Gigante Amigo" combina intérpretes de carne e osso e performances retrabalhadas digitalmente numa fábula sobre a amizade, centrada no Reino Unido do começo dos anos 1980.
O enredo, algo entre Charles Dickens e Lewis Carroll, acompanha a aliança entre a órfã Sophie (Ruby Barnhill) e um amoroso gigante (Mark Rylance) que fabrica sonhos. Seus inimigos são ogros ainda mais gigantescos que se alimentam de desprevenidas crianças inglesas.
Spielberg deve ter imaginado a oportunidade de revisitar o universo onírico infantojuvenil de "E.T." com o aparato da nova tecnologia digital de ponta de "As Aventuras de Tintim" (2011). Simplesmente não dá liga: os dois mundos recusam-se a misturar-se, como água e óleo.
Em nenhum momento se supera o incômodo contraste entre o humano de Sophie e o artificial do mundo dos gigantes. É como se duas concepções de cinema digladiassem no interior de um mesmo filme, sem que nenhuma consiga se impor.
Havia interação mais genuína entre Fay Wray e o primeiro, precário, mecânico King Kong de 1933; entre Gene Kelly e o rato Jerry em "Marujos do Amor" (1945); e entre o paspalho detetive vivido por Bob Hoskins e Roger Rabbit no delicioso filme de 1988 de Robert Zemeckis, do que em qualquer cena entre Sophie e o Gigante. Com esta fratura de base, nem toda tecnologia e a noção de ritmo spielberguiano conseguem colocar o filme de pé.
Tudo ainda se complica pela absoluta falta de sal da jovem protagonista. Nem uma centelha do carisma de Henry Thomas e Drew Barrymore em "E.T.", ou de Christian Bale em "Império do Sol" (1987), passa perto de Ruby Barnhill.
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