Depoimento
As veredas de Guimarães já são escassas, e antenas se impõem
É difícil lidar com a obra de João Guimarães Rosa e não se sentir provocado a ir esmiuçar o "sertão roseano", conhecer a gente daquele lugar, o bioma de buritis e veredas, as cidades, as roças, as mínimas coisas tão caprichosamente eternizadas nas histórias e contos desse clássico escritor parido naquele cerrado brasileiro.
Nada melhor do que um período sabático para ler e reler toda a obra de Rosa e pôr os pés naquele pedaço de Minas Gerais que ele muito bem nos apresentou. Foi isso o que eu pude fazer durante cinco meses em 2011.
As duas únicas imposições que fiz a mim mesmo foram: não deixar nunca faltar gasolina no carro e agir sempre de acordo com o tempo do sertão, que passa sem pressa e com prosa. Isso não é lenda!
Eugênio Silva - 1º.mai.1952/O Cruzeiro | ||
O escritor João Guimarães Rosa (de óculos) e sertanejos em maio de 1952 |
O silêncio é uma marca no sertão. Viajar por ele deu sentido a uma frase de Rosa em "Grande Sertão: Veredas". "O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais". Era preciso, então, ouvir esse silêncio.
Velhos vaqueiros e tropeiros cruzaram o meu caminho, caso do vivaz, lúcido e já quase cego homem de Beltrão, um lugarejo de Corinto, Feliciano Tavares de Souza, então com 94 anos. Personagem marcante.
Já velho, ele virou benzedor, um homem da "fé curativa". Ao longo da vida, teve 15 filhos com duas mulheres e uma companhia inseparável: uma arma calibre 38. "
"[Naquele tempo] Se não estivesse armado, eu não tinha vida [hoje]. Respeitava[-se] era a arma, não a pessoa. O governo deveria ter uma lei de desarmar todo mundo", dizia ele.
Novos personagens se apresentaram. Foram benzedeiros e benzedeiras vocacionados ""é, eles dizem que é preciso ter vocação para herdar os ensinamentos, a religiosidade e a bondade dos seus parentes mais velhos.
As doceiras do sertão e seus inseparáveis tachos de cobre, os produtores e vendedores de minhocuçu foram outros que conheci.
E não poderiam ter faltado os companheiros de botequim que contavam causos do vaqueiro Manuel Nardi (1904-1997), o Manuelzão, em Andrequicé.
MUDANÇAS
Muita coisa mudou no sertão. A paisagem mudou bastante. As veredas já são escassas.
Para ver de perto o "porto" do rio de Janeiro, onde Riobaldo e Diadorim se encontraram, foi preciso atravessar quilômetros de estrada de terra batida em meio a plantações de eucalipto, que viram carvão para siderúrgicas. Uma tragédia ambiental.
Muito da vida rural se tornou urbana no sertão mineiro. O desenvolvimento a partir da segunda metade do século passado levou a isso.
O "brega" anima as festas nas cidades. O marketing americanizado no comércio urbano chamou bastante minha atenção: "Lan House New Emotions", "Look da Moda", "Marly Free Modas".
Outros nomes também me pareceram um tanto estranhos: "Moda Nua Confecções" e "Zeus - A Arte de Vestir Bem". Haja criatividade!
Mas nas pequenas cidades do sertão prevalece a tranquilidade, a vida pacata. Chegar em Morro da Garça (2.630 habitantes) e ver de perto a colina solitária em forma de pirâmide que inspirou Rosa no conto "O Recado do Morro" foi mais um mergulho no universo do escritor.
Uma antena de telefonia na crista do local agora se impõe. Mas eu a saudei quando precisei usar o celular para enviar um S.O.S. para a retirada do carro atolado.
Nessa viagem dos livros para a realidade do sertão de hoje, foram muitas descobertas. Somos apresentados a um mundo em que as pessoas, embora simples, nos contam histórias cheias de valor, vindas de um tempo em extinção.
Retornar a Cordisburgo e rever o Museu Casa de Guimarães Rosa, conhecer o Memorial Manuelzão, em Andrequicé, descobrir o Memorial Carlos Chagas, em Lassance, me proporcionaram experiências memoráveis. Revi grutas e os tantos rios que demarcam o "sertão roseano". Nadei em vários deles.
É uma viagem que vale a pena. "Aprender a viver é que é o viver mesmo", ensinou Rosa.
Livraria da Folha
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