Convidado da Flip, Irvine Welsh escreve negativo de 'Trainspotting'
"Escolha gente. Escolha vida. Escolha pagar um financiamento, escolha máquinas de lavar roupa, escolha carros, escolha sentar-se num sofá assistindo a programas de TV idiotas, enchendo sua boca de comida ruim. Escolha apodrecer em casa."
A abertura de "Trainspotting" é só um pouco diferente no livro e no filme, que começa com um grupo de jovens em desabalada carreira pelas ruas de Edimburgo enquanto ouvimos a narração de Ewan McGregor contrapondo esses itens de uma suposta "vida normal" ao tema da obra: "Mas afinal por que você precisa dessas coisas se você tem a heroína?".
Incômodo, violento, eletrizante, "Trainspotting" –o livro saiu em 1993; o filme, em 1996– foi considerado para alguns "A Laranja Mecânica" dos anos 1990.
Jeff J Mitchell/Getty Images | ||
O escritor Irvine Welsh posa para foto no Dominion Theatre, na Escócia |
Para o escocês Irvine Welsh, 58, convidado da próxima Flip (entre 29 de junho e 3 de julho), foi apenas "algo que eu precisava colocar para fora, para depois disso me tornar um escritor de verdade", diz o autor em entrevista à Folha. De fato, depois deste vieram outros dez romances.
"Só que para o mundo foi uma outra coisa, o livro mudou meu nome para sempre. Passei a ser chamado de 'autor-de-Trainspotting-Irvine-Welsh". E eu simplesmente me resignei a isso", conclui, dando risada.
GINÁSTICA
Voltando de uma visita à Escócia, onde foi ver as locações de uma sequência de —justamente— "Trainspotting", que terá os mesmos elenco e diretor (Danny Boyle) e estreará em janeiro de 2017, o autor contou como mudou seus hábitos desde que se mudou para os EUA.
"Levo uma vida mais saudável do que naquela época, escrevo mais, saio menos à noite, faço ginástica, mas ainda me sinto estranho com relação às obsessões que compõem a vida nos EUA, com o corpo e a saúde, por exemplo", diz o autor, agora radicado em Chicago.
Desse estranhamento surgiu a inspiração para o livro que sai agora no Brasil, "A Vida Sexual das Gêmeas Siamesas" (Rocco), e que é uma espécie de negativo de "Trainspotting".
Enquanto aquele mostrava a vida desesperançada de um grupo de jovens rapazes escoceses entregues à droga e sem perspectivas, este trata de duas mulheres norte-americanas, cujos destinos se cruzam numa paisagem bem mais ensolarada, Miami.
"A primeira vez em que estive ali, com todo aquele calor, aquelas pessoas bronzeadas, aqueles corpos expostos e perfeitos, e me vi tão branco, tão vergonhosamente escocês, eu fiquei muito intrigado, e dessa observação nasceu a ideia do livro", explica.
A trama gira em torno de uma treinadora de ginástica, Lucy Brennan, que se transforma em heroína ao ser filmada desarmando um homem que perseguia duas pessoas.
A cena inspira uma paixão solitária e obsessiva numa testemunha do episódio, Lena Sorensen, uma mulher gorda e solitária.
Welsh já veio ao Rio uma vez, e apesar das altas temperaturas, não viu nas praias brasileiras a fixação que considera doentia nos EUA.
"No Brasil há um culto ao corpo, mas também há espaço para gente de diferentes pesos e medidas que se expõem nas praias. Onde há menos dinheiro, há pessoas mais gordas, é natural. Mas não vi no Rio algo discriminatório contra elas, não como há fortemente em Miami."
POLÍTICA
Nos últimos tempos, Irvine Welsh tem se envolvido nas questões que envolvem o futuro da Escócia e do Reino Unido, entrando em renhidos debates com outros intelectuais britânicos.
Em 2014, defendeu a independência de sua terra-natal no referendo que acabou decidindo que a Escócia não se separaria do resto do país.
"Fiquei muito decepcionado, pois não tenho dúvida de que a Escócia é uma cultura e uma identidade diferente. Meu trabalho é uma afirmação disso", afirma. Em seus livros, Welsh explora os matizes dos sotaques e gírias usados ali, além de ser um agudo observador dos costumes da sociedade escocesa.
Agora, porém, às vésperas de outro referendo –que decidirá se o Reino Unido permanece ou não na União Europeia, no próximo dia 23–, Welsh voltou a se pronunciar. "Se precisamos de tantos referendos, é porque algo está errado com a política de um modo geral", diz.
Na prática, afirma, não vê vantagens em o Reino Unido deixar o bloco. "Os que ganharão com qualquer das alternativas serão os de sempre. E me espanta saber que ainda há gente que acredita numa Inglaterra pura, sem a influência do continente ou dos imigrantes de uma forma geral", acrescenta.
Welsh ainda vê "uma insatisfação geral no mundo com a velha forma de fazer política, as pessoas não aguentam mais ir votar e ver as mesmas práticas se repetirem. No Brasil vocês estão vivendo isso. Além do mais, o capitalismo não consegue mais oferecer empregos a todos, portanto as pessoas estão famintas por mudanças", diz.
Vendo de perto a eleição norte-americana, que vai chegando à sua reta final, Welsh se diz indignado. "Uma eleição termina e já começa outra, os políticos passam todo o seu tempo pensando na próxima, aqui nos EUA a campanha dura dois anos. Não posso acreditar que há alguém governando bem entre uma eleição e outra."
Depois de "A Vida Sexual das Gêmeas Siamesas", lançado em 2014, Welsh já lançou mais dois livros. O mais recente, "The Blade Artist", ainda inédito no Brasil, volta a dar vida a um personagem de "Trainspotting", o violento Begbie (interpretado no filme por Robert Carlyle), também transportado para os EUA por um tempo. Quando retorna a Edimburgo, tem um conflito de identidade.
Questionado sobre se o mesmo ocorre com ele quando visita a Escócia, Welsh minimiza e faz piada.
A Vida Sexual Das Gêmeas Siamesas |
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"Não, porque quando vou, procuro apenas me divertir. Mas é óbvio que, se me ponho a pensar, percebo o imenso impacto que causa transportar-se de uma cultura a outra."
Na Flip, Welsh participará da mesa "Na Pior em Nova York e Edimburgo", com o norte-americano Bill Clegg.
A VIDA SEXUAL DAS GÊMEAS SIAMESAS
AUTOR Irvine Welsh
TRADUÇÃO Paulo Reis
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 48 (416 págs.)
Livraria da Folha
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