Crítica
Versos de Mia Couto apelam à facilidade gratuita
Muitos leitores desconhecem que o escritor Mia Couto se crismou na literatura primeiro como poeta, em 1983, com o livro "Raiz de Orvalho". E só no início dos anos 1990 debutou como romancista, escudado pela caução de certa crítica lusitana, que o cortejou como um autor que iria implodir a língua portuguesa.
Eu vivia em Lisboa, e ler isso em alguns jornais lisboetas me fazia sorrir de maneira tácita, balançando a cabeça e imaginando como os jornalistas que escreviam encômios de tal monta decerto não tinham lido uma linha de Guimarães Rosa, e escamoteavam até um conterrâneo, Aquilino Ribeiro.
Silvia Costanti / Valor | ||
o escritor moçambicano Mia Couto faz seleção com poemas de própria autoria |
Acompanhei o seu percurso literário, e data desta época o conhecimento da sua produção poética. Após a edição dos seus romances, no Brasil, agora é a vez de surgir uma seleção da poesia feita pelo próprio autor. Publicado em diversos países, várias edições em Portugal, galardoado com o Prêmio Camões, em 2013, ele conquista espaço por estas bandas.
Mia nasceu na cidade da Beira, Moçambique, em 1955. Tem vindo a explorar uma vertente ficcional em que não raro o arregimentam na linhagem do realismo fantástico, com a marca identitária africana, e uma nítida mescla do que o criador de "Grande Sertão: Veredas" nos legou.
O perímetro traçado por sua poesia, contudo, revela que ele fez bem em dar relevância ao projeto romanesco. Os cacoetes estilísticos de Mia são prontamente detectáveis, pois reproduzem um mecanismo óbvio, em que não faltam aspectos atuantes inclusive em sua prosa.
Mia compartilha uma percepção do mundo que, muitas vezes, beira o piegas, como se quisesse assumir o posto de conselheiro, com um discurso terno e quase piedoso: " Vida/ vale vivê-la/ se, de quando em quando,/ morremos/ e o que vivemos/ não é o que a vida nos dá/ nem o que dela colhemos/ mas o que semeamos em pleno deserto".
Tendo em conta que a moda no Brasil é receber mensagens de celular altivas, versos como estes correm o risco de se tornarem virais.
É uma poesia que se quer afirmativa, soa como algo que já lemos, e invadida por imagens que desejam surpreender a todo custo, e quase sempre resvalam no artifício. Abusa dos clichês, que ocorrem em toda a sua obra, trafegando comumente pela expressividade banal: "Nosso amor é impuro/ como impura é a luz e a água/ e tudo quanto nasce/ e vive do tempo (...) E eu sofro de te abraçar/ depois de te abraçar para não sofrer".
ANACRÔNICO
Numa época em que o empoderamento e a afirmação de uma narrativa feminina recrudescem, espanta que o autor não tenha tido o mínimo rigor seletivo ao incluir no livro algo assim: "Solteira chorei.// Casada, já nem lágrima tive./ Viúva, perdi olhos/ para tristezas.// O destino da mulher/ é esquecer-se de ser.". Ele nem sequer evita o amadorismo e a autobenevolência: "O poeta não quer escrever/ Apenas ser escrito// escrever, talvez,/ apenas enquanto dorme".
Mas o que poderia afiançar a admiração do leitor converte-se aqui num empecilho. A profusão de neologismos (típica da prosa) acaba por originar bizarrias flagrantes como "a deslumbrância da viagem", "e me converti em sonholenta janela", ou "o Mano Juca se poentou no rio".
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Mia Couto |
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Tais efeitos ecoam como que forçados, catapultados de uma página macarrônica de Odorico Mendes, ou do estilo rococó do português Filinto Elísio. Mas o fantasma máximo é Guimarães Rosa. Só que aquilo que no brasileiro é estrutura, organicidade, ritmo naturais, em Mia é subterfúgio planejado, escopo verbal pré-determinado, e tudo envernizado pela facilidade gratuita.
Deslocar vocábulos, inverter os sentidos, contorcer a gramática, ativar um gêiser imagético no poema não são aquisições estranhas à nossa poesia. A fórmula aviada por Mia é conhecida, e a presença de Manoel de Barros é outra evidência. O diapasão do moçambicano acaba por repercutir vozes genuínas, que fazem muita falta na atualidade.
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