Crítica
'Hotel Jasmim' revela amizade surgida à revelia das diferenças
Em nossos tempos de crescente intolerância ideológica, Narciso não só acha feio, mas insulta, agride e mata o que não é espelho. "Hotel Jasmim" sugere outro caminho.
A peça, com direção de Denise Weinberg e Alexandre Tenório, trata de dois personagens aparentemente incompatíveis, que acabam por dividir um quarto de pensão.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Daniel Farias (esq.) vive o garçom Jorge e Eduardo Pelizzari, o michê Fernando, na peça |
Um deles, Jorge Washington, alusão ao presidente dos EUA, acaba de chegar do Nordeste para trabalhar como garçom, após a morte do pai num latrocínio. Traz na bagagem valores tradicionais de família e religião (evangélica) e um idealismo ingênuo.
Jorge dividirá o teto com Fernando, michê (por gosto, diz) descrente em Deus e nos homens. Sua visão desiludida da vida pode ser resumida na fala: "Isso aí é a vida aqui! Isso é todo dia. Um bate, outro apanha. E o que apanha tem que ficar calado".
A peça de Cláudia Barral prima pela habilidade em retratar o pêndulo de atração e repulsa, hostilidade e ternura entre os dois. A referência imediata é "Dois Perdidos numa Noite Suja", de Plínio Marcos.
A química entre os atores Eduardo Pelizzari e Daniel Farias garante que a contundência do texto de Barral seja transmitida com clareza. O mesmo não se pode dizer da opção da cenografia: para fugir da solução naturalista mais óbvia, o quarto de hotel é caracterizado como um outdoor de costas para a plateia.
A ideia, que poderia ter melhor nitidez cênica, é boa: retratar a invisibilidade de pessoas mais consumidas que consumidoras na sociedade. Com o tempo, os personagens parecem ensaiar uma rebelião e vão pondo abaixo a estrutura que os aprisiona. Desafiam também a cartilha do Narciso violento de que, nesse mundo de quase todos contra todos, só se pode ser amigo de um sósia moral.
E as próprias afinidades ocultas vêm à tona, mas não por uma mera questão de "luta de classes". A amizade genuína, lembra este belo espetáculo, terá sempre aquele quê enigmático captado tão bem na justificativa que Montaigne dava para seu afeto por La Boétie: porque era ele, porque era eu.
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