Monólogo reflete sobre o terror sem recorrer a clichês de loucura
"Desde o primeiro suspiro no mundo, percebi que eu não existia. Não é que eu tinha nascido morta, é que eu nasci inexistente". Assim, a Filha –como é nomeada no texto– vivida por Fani Feldman começa seu testemunho em "Como Todos os Atos Humanos", sobre a jornada que a levou a matar o pai a golpes de estilete nos olhos.
Feldman também assina a dramaturgia, baseada em fragmentos de Marina Colasanti, Nelson Coelho e Giorgio Manganelli. E nos oferece uma atuação notável que, embora recorra à estética do grotesco, resiste aos clichês gestuais de personagens "loucos".
A opção do diretor Rui Ricardo Diaz por poucos elementos cênicos maximiza a responsabilidade do intérprete, o que se alinha aos preceitos do Laboratório Dramático do Ator conduzido por Antonio Januzelli.
Cabelo Duro/Divulgação | ||
A atriz Fani Feldman em cena de 'Como Todos os Atos Humanos' |
"Como Todos os Atos Humanos" propõe um olhar para o monstruoso sem, porém, os prejulgamentos vociferados num noticiário de TV de fim de tarde. A proposta é a de investigar, para além de uma tragédia familiar isolada, a violência da condição humana, mais ou menos camuflada nas condutas mais corriqueiras, e cada vez mais liberada das malhas da repressão preventiva em nossa época de banalidade do mal.
O parricídio no monólogo e suas circunstâncias remetem a uma das possíveis causas desta maré de barbárie: o atual declínio da autoridade paterna, intermediário essencial na estruturação emocional e moral da personalidade.
Não que um "homem forte" e presente no lar regido pelo modelo familiar habitual fosse por si só a panaceia. O pai, o senhor Augusto, esteve sempre lá, firme, pacato, bem-sucedido e inteligente, embora com mentalidade estreita, avesso aos sonhos e à vida. Provedor como pede o figurino. Machista e opressivo, como até pouco tempo se considerava natural.
Numa das alegorias que enriquecem de realismo fantástico o espetáculo, a filha conta que a mãe, certa vez, se obrigou a passar o ferro quente no próprio rosto para apagar as rugas de que seu dono –que a "comprara numa liquidação"– vinha se queixando.
O horror do que é narrado se conjuga com a inquietante potência das expressões faciais, inspiradas no tormento de quadros como o icônico "O Grito" de Edvard Munch e a explosão dos contornos anatômicos convencionais nos autorretratos de Francis Bacon.
Um repertório estético que o espectador não precisa conhecer de antemão para sentir em toda sua força psíquica, até pelo entrosamento que tem com a situação cênica concreta. Ajudam a dar corpo à bizarra poética psicótica de uma personagem cujo sentimento de inexistência reverbera em alucinações como a de portar uma cara sem rosto e a de hospedar no olho uma aranha que, instalada ali depois do crime, não mais lhe permitirá dormir.
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