CRÍTICA
'Melancia' transita bem entre sensualidade, besteirol e crítica
Ao menos um efeito o primeiro espetáculo da Cia Monstro tem: o espectador dificilmente vai comer melancia como antes. Formada por ex-alunos da Escola de Arte Dramática da USP, a trupe mergulha fundo nos sentidos e no sabor (delicioso, por sinal) dessa fruta para construir uma sensual alegoria da nossa "modernidade líquida".
Com esse conceito, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman se refere à lógica superficial, instável, rápida e descartável das relações sociais no mundo contemporâneo. Um dos sintomas é a explosão da pornografia, num cenário de maior dificuldade em formar vínculos amorosos não apenas duradouros, mas emocionalmente satisfatórios.
Em "Melancia", a pornografia surge como a solução apelativa que quatro artistas de cinema encontram para emplacar uma obra de sucesso. As imensas possibilidades eróticas do uso da fruta são exploradas com vigor, na esteira do filme "O Sabor de Melancia", de Tsai Ming-Liang.
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Da esq.: Paulo Vinicius, Ana Paula Lopez, Victor Mendes e Sol Faganello na peça "Melancia" |
Não há sexo explícito. Nem mesmo cenas escandalosas, ao estilo da recente peça "Macaquinhos". Os quatro rapazes e moças conseguem um louvável equilíbrio entre uma mera denúncia de cunho nostálgico e conservador da atual erotização das relações humanas, e seu uso vulgar. Segundo um dos personagens, é um convite a resgatar –inclusive das garras de quem, com objetivos "artísticos", aparenta criticar o que, no fundo, explora– o valor transgressivo do desejo. Em citação a Lacan, ele diz que devemos aprender a pensar não só com a cabeça, mas com o corpo todo.
Num momento pedagógico da peça, um PowerPoint informa que a melancia, composta quase totalmente de água, surgiu paradoxalmente no deserto, numa mostra de "ceticismo da natureza" ou de resiliência da vida em condições desfavoráveis.
Numa situação apocalíptica não tão distante, a cidade em que se passa a história está em colapso hídrico –o que não deixa de ser irônico nesta era diagnosticada como "líquida". E o que é trágico se torna também satírico quando o Brasil vai parar nas manchetes do mundo todo quando uma estrela do pagode descobre o valor da melancia como substituto da água.
O riso também é inevitável em outras cenas, como a do personagem cujo sonho é entrar para o hall da fama da melancia, e depois vira empreendedor de sucesso com produtos temáticos como barraca de camping, passarinho e até "abacate de melancia". Destaque também para o momento silencioso em que os quatro comem melancia enquanto o telão ao fundo mostra uma explosão atômica.
"Melancia" transita com desenvoltura entre a sensualidade, o besteirol, a crítica social e a reflexão existencial séria –quando da descoberta de um caroço de câncer no seio em plena suruba. Apesar de algumas cenas supérfluas, mostra talento em cunhar imagens que dão água na boca –o que não é pouco em tempos de vida seca.
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