Crítica
Autor faz da memória base e protagonista de narrativas
O mundo inventado e recriado por Sergio Sant'Anna neste "O Conto Zero e Outras Histórias" vai além da tão festejada memória do autor. Como se, no lugar de escrever, ele soltasse pandorgas no céu dos anos 4o e 5o, como se a técnica fosse incorporada pelo estilo, nesse caso o estilo é –não por acaso– matéria de memória.
Em "O Conto Zero", que abre o livro, o garoto pressente (o que é diferente de "ver") a modernidade saindo de uma nuvem. A descrição que Sant'anna faz dos "luminosos" da Água Salutaris já vale quase o preço do ingresso. Não me atrevo a reproduzi-la nesta simplória resenha. Nota: a "modernidade" saía de uma nuvem dentro de um teleférico iluminado.
Daniel Marenco/Folhapress | ||
O escritor Sérgio Sant'Anna em sua casa no Rio de Janeiro |
"Conto Zero" também trata das gazetas desse garoto visionário e do irmão na época em que moravam em Londres, mas fala sobretudo das consciências pesadas de ambos diante de uma inocência que, desde aquela época, já se perdia e anunciava o próprio féretro graças à memória reinventada do autor, hoje septuagenário.
Adiante temos "Flores Brancas" e mais oito histórias. Quando a memória não é necessariamente protagonista e serve "apenas" como base da narrativa. Como se Santa'Anna dissesse: posso me dar ao luxo de soltar pandorgas, ter amantes possuídas pelo diabo e criar raízes.
Infelizmente o espaço é curto para esmiuçar "Vibrações" –ocasião em que o autor (ou sua memória) foi para Iowa e travou contato com artistas do mundo todo– e as outras histórias que, depois de tantos anos, reverberarão, agora, na mente de seus leitores.
Mas creio que "O Conto" permite um resumo. Na busca de um conto que o redimisse de todos os outros, o autor misturou o desejo de chegar ao ponto zero (quem não quer o Aleph para si?) com a matéria da mais refinada ficção, como se as demais histórias se condensassem no encontro trágico de uma estudante com um mendigo.
O Conto Zero E Outras Histórias |
Sérgio Sant'Anna |
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O cenário é a passarela que dá para os jardins do MAM, no Rio. Nem seria preciso dizer que a sobrevida da moça somente será plausível diante da inexistência do mendigo que, depois de ameaçá-la "também sou gente", se atira para a morte.
Ele transformado em pasta humana no asfalto da via expressa, e ela, digamos, "transida pela experiência", encontrará refúgio numa escultura de ferro dentro do museu; agora a moça também é pasta, pasta da modernidade –como "se ela se perdesse num lago tranquilo e profundo dentro dela mesma,onde reinava a paz".
O novo livro de Sergio Sant'Anna vai muito além da memória: trata de crateras infernais, de retornos inexoráveis, de amálgamas monstruosos e de paz.
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