Crítica
'Razão Social' dosa indignação e delicadeza ao tecer crítica política
Ao final deste ano de conflagrações sem fim, "Razão Social" se insurge poeticamente como uma clareira de consciência crítica. O espetáculo é um manifesto artístico ante os problemas da realidade brasileira, escudado na secular cultura do samba.
O espírito e a ambiência do Zicartola (1963-65) são referência para formulações estéticas tão singelas e sofisticadas quanto o são os anfitriões –o sambista Cartola e sua mulher, a cozinheira Zica– e os parceiros frequentadores do mítico restaurante e casa de samba do Rio de Janeiro.
A cozinha, as mesas de bar e o palquinho do espaço cênico são nichos realistas para as superposições de planos com cantores, compositores, estudantes e intelectuais.
Em interface com fatos históricos, a ação se passa na virada de 31 de março para 1º de abril de 1964. Perseguidos por militares, um operário (Gero Camilo) e um universitário (Victor Mendes) vão parar no sobrado da rua da Carioca onde encontram refúgio na sabedoria de Zica (Fabiana Cozza) e Cartola (Adolfo Moura).
O roteiro intercala a tensão do país que mergulha em regime sombrio e o cancioneiro em celebração ao samba.
A interpretação de Cozza é pilar neste projeto. Cantora de sólida carreira, com trânsito pelo teatro e pela dança, ela articula sem esforço os registros vocais de Clementina de Jesus e Nara Leão, antagônicos, e expressa a ascendência comunitária de Zica sobre as novas e velhas gerações.
Em Moura, impressionam a feição e o corpo esguios, próximos da elegância de Cartola, bem como o lirismo da voz. Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Noel Rosa e outros comparecem por meio dos três instrumentistas somados ao elenco: o violão de sete cordas de Everson Pessoa, a percussão de Gerson da Banda e o cavaco de Nino Miau.
A maior colaboração de Camilo e Mendes não está na dupla considerada subversiva à ditadura, de cacoete trapalhão, mas em conceber, escrever e dirigir a obra que dosa indignação e delicadeza.
"Razão Social" atualiza a agitação e propaganda ("agit prop") dos anos 1960, quando o inimigo era claro. Saúda a arte do samba, seu poder de resistência de matriz coletiva, mestiça. A presença negra na plateia confirma.
Pode ser discutível a perspectiva romântica de estudantes e trabalhadores, classe média e periferia, unidos por uma causa sociopolítica. Mas o espetáculo não foge à luta no presente de incertezas, nem exclui o humor para pensar o que vai ser deste país, como se pergunta Zica. É de arrepiar os céticos a cena de abertura com o jogral de secundaristas na ocupação de uma escola. Algo se move na catatonia.
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