Crítica
Chauí traça imagem de Espinosa a partir de críticas e elogios a ele
Conhecer uma obra filosófica não é saber o que o tempo a fez sofrer, mas sim como a obra agiu sobre o tempo.
Se importam as influências sofridas, será sempre em função daquilo que ela produziu, que afirmou. Essa atitude orienta "A Nervura do Real - Imanência e Liberdade em Espinosa", de Marilena Chauí, desde suas primeiras páginas, as quais se ocupam em traçar a imagem do espinosismo a partir do exame paulatino dos comentários, objeções e elogios mais célebres feitos a ele.
Após desenhar a paisagem, a intérprete procede à própria leitura. Em toda a extensão da obra, ressalta-se o que ela denomina de "nervura do real" e que, aplicado ao caso, significa que cada obra escrita põe sua posteridade, que de certo modo ela é responsável por sua fortuna e só se deixa ler à luz da história de sua recepção –é a "imanência da causa no efeito".
Pois bem. A páginas tantas do recém lançado segundo volume discute-se o poder da fortuna –não apenas da fortuna como fado como também de Fortuna, a deusa caprichosa. E ao leitor se impõe a questão: que sorte a Fortuna reservará a uma obra que, no gesto mesmo de afirmar sua responsabilidade pelo próprio destino, dispõe-se a vencer seu jugo?
O novo volume é mais persuasivo do que o primeiro, pois o completa –é o jogo da ampliação do conhecimento da natureza naturante pela perspectiva da naturada.
O capítulo mais convincente do livro, aliás, é o último. Só lá, na sétima e última nota complementar, é que a obra oferece sua chave, num discreto adendo sobre certa distinção retórica trabalhada por João Adolfo Hansen. O final da obra é sua introdução, e a argúcia com que se fecha sua arquitetura está entre as razões para que estas mil e quinhentas páginas constituam o melhor comentário em qualquer língua para Espinosa.
Sustenta-se aí que, assim como é preciso andar ao redor de uma escultura até encontrar a perspectiva que revele a congruência de suas partes, assim também se deve andar ao redor de um texto (para compô-lo ou para lê-lo), e que o que Espinosa busca no que vê são antes de tudo as congruências. E se ele as busca, o certo será buscá-las nele, ou não se entenderá o que as proporções revelam.
É difícil aceitar que Espinosa "permanece um clássico" em coisas de retórica, dado seu uso da técnica retórica da agudeza. Pois não deveria então ser a estranheza de Espinosa relacionada à agudeza, enquanto esta se vale do espanto para agradar e persuadir?
Tal atitude ofereceria ao menos a vantagem de não isolar o espinosismo nem lhe roubar a singularidade –pois a retórica se ocupa de singularidades, da singularidade da expressão.
A Nervura Do Real Il |
Marilena Chaui |
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Diante do livro, o leitor se lembrará da comparação, feita pela autora, do filósofo com Rembrandt, que faz a luz resplandecer como que desde dentro do objeto pintado, assim como Espinosa.
Essa emergência dramática da luz é um último trunfo retórico tanto do pintor como do filósofo. A luz que ao fazer ver se deixa ver. E se a luz do ouro velho de Rembrandt liga o desengano à transitoriedade da fortuna, então se impõe mais uma vez a questão: o que Fortuna guarda para "A Nervura do Real"?
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