Obra póstuma de Tolkien faz versão esperançosa do mito de Orfeu
J.R.R. Tolkien, o autor de "O Senhor dos Anéis", costuma ser criticado pela falta de romantismo e de personagens femininos fortes nas sagas da Terra-média, mas uma das primeiras sementes de sua mitologia foi uma história de amor na qual uma elfa superpoderosa derrota a própria morte.
"Beren and Lúthien", novo livro póstumo do autor, mostra como essa narrativa evoluiu em verso e prosa.
A obra é a provável despedida de Christopher Tolkien, filho caçula e mais próximo do autor, que passou a maior parte das últimas cinco décadas envolvido com o trabalho de editar o colossal e bagunçadíssimo espólio literário do pai.
Para isso, foi preciso decifrar textos escritos apressadamente a lápis em alojamentos militares da Primeira Guerra Mundial, rascunhos em folhas de provas da Universidade da Oxford e resumos de tramas na parte de trás de envelopes, entre outras tarefas ingratas.
"Estou em meu 93º ano de vida, e este é (presumivelmente) meu último livro na longa série de edições dos escritos de meu pai", confidencia ele na introdução.
Para o editor do volume, dois outros motivos fazem de "Beren e Lúthien" um marco: o forte conteúdo autobiográfico na origem dos textos e as ramificações que partem deles e afetam toda a mitologia ficcional do autor.
A história surgiu na cabeça de Tolkien em 1917, quando ele estava de licença do Exército britânico e visitou um pequeno bosque no norte da Inglaterra com Edith, sua mulher, com quem se casara no ano anterior.
Ao vê-la dançar em meio às flores de cicuta, Tolkien imaginou pela primeira vez a elfa Lúthien Tinúviel, a mais bela de todas as criaturas do mundo.
POBRE MORTAL
Na versão mais conhecida da narrativa, publicada em "O Silmarillion", um elemento essencial da história é a paixão proibida de Lúthien por Beren, um guerreiro humano (mortal, portanto, ao contrário dos imortais elfos).
Juntos, os dois enfrentam o próprio Morgoth (o Lúcifer do universo de Tolkien) para obter a joia exigida pelo pai de Lúthien para permitir que ela se casasse com o mortal. Quem salva a pele dos dois repetidas vezes é a donzela élfica. Mas originalmente Beren também era um elfo, mostram textos publicados no livro.
Esses e outros detalhes – aliás, já conhecidos de outras publicações póstumas– dão ao leitor uma visão privilegiada sobre os caminhos tortuosos da criação literária tolkieniana.
Trata-se, no mínimo, de um alento para escritores iniciantes: Tolkien demorou muito para acertar a mão e produzir a nobreza severa e contida do texto de "O Silmarillion".
Basta dizer que o papel de Sauron (o vilão sobrenatural de "O Senhor dos Anéis") na narrativa inicialmente era desempenhado por um tal Tevildo, Príncipe dos Gatos –um felino gigantesco possuído por espíritos malignos e servido por asseclas com nomes onomatopaicos como Miaulë.
Dos anos 1910 aos 1950, o autor também oscilou entre inúmeras versões, como o longo poema narrativo "A Balada de Leithien" (em octassílabos rimados) e formas mais arcaizantes, resumidas ou expandidas da história.
No mito de Orfeu, o herói grego quase consegue resgatar sua amada do reino dos mortos, mas fracassa no último momento. Apesar de tanta irregularidade, não se pode negar que Tolkien alcançou sua meta: uma versão esperançosa daquele mito, na qual a vitória é da misericórdia, e não da inexorabilidade. Não é pouca coisa.
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BEREN AND LÚTHIEN
AUTOR J.R.R. Tolkien; edição de Christopher Tolkien
EDITORA HarperCollins
QUANTO £17,99 (edição brochura, cerca de R$ 73) ou £12.99 (e-book, cerca de R$ 52); 288 págs.
Haywood Magee/Picture Post/Getty Images | ||
Professor, filólogo e escritor John Ronald Reul Tolkien (1982-1973) em retrato de 1955 |
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