Viciado, homicida confesso, e agora escritor estreante
TBA/FOLHA DE S.PAULO | ||
Curtis Dawkins está cumprindo uma sentença de prisão perpétua sem liberdade condicional em Michigan |
Certa noite de outubro, em 2004, Curtis Dawkins fumou crack, colocou uma fantasia de gangster para o Halloween e invadiu uma casa, onde matou um homem e tomou outro como refém, em um crime que atraiu 24 policiais regulares e mais uma equipe armada especial com seis integrantes. Ele foi condenado a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional, no Michigan.
Na terça-feira, ele se tornou um escritor publicado, quando sua primeira coleção de contos foi lançada pela editora Scribner, divisão literária de um dos maiores grupos editoriais dos Estados Unidos. A improvável história de como Dawkins, viciado que continua em recuperação e homicida confesso, conquistou um contrato de publicação com uma grande editora representa uma estranha inversão ante a narrativa comum dos escritores presidiários.
Dawkins começou como escritor, conquistando um mestrado em belas artes, antes de cometer seu crime. E embora seu livro, "The Graybar Hotel", tenha sido elogiado por autores como Roddy Doyle e Atticus Lish, também provocou questões desconfortáveis para a editora, que precisa convencer livrarias e críticos a apoiar a obra de um escritor estreante, desconhecido e além disso homicida condenado.
A maioria dos contos de "The Graybar Hotel" tem por cenário cadeias e penitenciárias e é narrada em primeira pessoa, em muitos casos por um prisioneiro sem nome. Em "573543", um presidiário chamado Pepper Pie recebe o mesmo número de identificação de um presidiário morto e aprende a se tornar invisível e a atravessar as paredes, o que no fim permite que escape. O título da história é o número de registro de Dawkins na penitenciária.
Em "The Boy Who Dreamed Too Much", o narrador está em quarentena e passa por uma avaliação física antes de ser encaminhado a uma das penitenciárias de Michigan. O crime do protagonista jamais é revelado, mas sua culpa é palpável. O cheiro de tabaco queimando "me fez pensar em minha casa, e em toda dor que causei", ele reflete. "Pensei nos meus filhos, e na liberdade, em tudo que tomei e perdi".
O romancista Nickolas Butler disse que inicialmente hesitou em elogiar o livro, dada a gravidade do crime de Dawkins, mas por fim escreveu uma recomendação entusiástica, classificando os contos como "autênticos e raros", ao ser informado do remorso do escritor. "Eu queria saber o que havia acontecido, e como ele se sente a respeito agora, porque obviamente há uma família que foi devastada por suas ações", disse Butler.
Não é surpresa que alguns membros da família em questão tenham sérias reservas. Kenneth Bowman, o irmão mais novo da vítima, disse que desejava que Dawkins, 49, tivesse recebido a pena de morte. "Não creio que ele deveria ter o direito de publicar coisa alguma", disse Bowman, que é empreiteiro em Phoenix. "Ele não deveria ser autorizado a fazer coisa alguma naquela prisão a não ser sofrer um inferno pelo resto da vida".
Os leitores podem ter dúvidas e reservas. Dawkins se refere de passagem ao seu crime nos agradecimentos do livro, em uma menção oblíqua que de forma alguma captura o horror daquela noite de tiros e suas horríveis consequências, escrevendo que "muitas vezes há tanta tristeza e pesar em meu coração que ele parece a ponto de explodir".
Passados quase 13 anos, Dawkins ainda não consegue compreender o que o levou ao homicídio.
"Não quero culpar as drogas e dizer que não fui eu, porque parte do crime é minha culpa direta", ele disse em entrevista. "Passei os anos posteriores tentando compreender os acontecimentos daquela noite".
RECAINDO NO VÍCIO, E DEPOIS VIOLÊNCIA
Dawkins cresceu em Louisville, Illinois, onde sua família tinha uma mercearia e uma empresa de processamento de carne.
Ele começou a beber quando tinha 12 anos, um hábito que se agravou depois que ele chegou aos 20 anos, e o levou a abandonar a faculdade.
Em 1991, ele procurou um centro de tratamento de viciados e começou a participar de reuniões do grupo Alcoólicos Anônimos. Quando por fim recuperou a sobriedade, passou a trabalhar na empresa do pai. Um homem que ele havia conhecido durante as reuniões dos Alcoólicos Anônimos lhe deu livros de Faulkner e Salinger, e Dawkins se apaixonou pela literatura e decidiu estudar inglês na Universidade do Sul do Illinois.
Mais tarde, se matriculou em um programa de pós-graduação na Universidade do Oeste do Michigan, em Kalamazoo, onde estudou sob a orientação de Elizabeth McCracken, Jaimy Gordon e Stuart Dybek. Em uma oficina de literatura, ele conheceu Kimberly Knutsen, que estava fazendo doutorado em inglês. Os dois começaram a namorar em 1998. Ela tinha um filho de três anos, Henry, e depois de alguns meses de relacionamento Dawkins e Knutsen tiveram um filho, Elijah, que nasceu prematuramente, depois de apenas 26 semanas de gestação. Dois anos mais tarde, o casal teve uma filha, Lily Rose, também prematura.
DAWKINS FAMILY PHOTO/NYT |
Curtis Dawkins segurando seus filhos Elijah, à direita, e Lily Rose em 2003 |
Eles compraram uma casa na cidade de Portage, Michigan, e Dawkins foi trabalhar como vendedor de carros enquanto Knutsen continuava estudando para sua dissertação. Ele frequentava regularmente as reuniões dos Alcoólicos Anônimos, bem como uma igreja que aceitava cristãos de todas as seitas, e levava seus filhos a conferências sobre Pokemon e jogos de beisebol.
Mas o dinheiro era escasso, e o casal brigava muito. Dawkins começou a recair no vício, começando por analgésicos vendidos sob receita. Ele passou a usar ketamina, e em seguida heroína. Na metade de 2004, Knutsen pediu que ele saísse de casa. Seu uso de drogas disparou, e ele se tornou paranoico quanto a suas reuniões com traficantes de drogas, e por isso comprou uma arma para proteção, um revólver Smith & Wesson calibre.357.
Na noite em que matou o pintor de paredes Thomas Bowman, 48, que vivia em Kalamazoo ao lado do campus da universidade, Dawkins primeiro visitou Knutsen e seus filhos. Eles jantaram juntos, e ele assistiu a um jogo de beisebol na TV com Henry, que tinha 10 anos. Dawkins disse que estava indo para casa, para ver um filme, e que ligaria para Knutsen mais tarde. Era sábado, 30 de outubro, e ele planejava nova visita à família na noite seguinte, para distribuir doces às crianças visitantes enquanto Knutsen levava Henry; Lily Rose, 4; e Elijah, que tinha quase seis anos, para pedir doces de Halloween nas casas vizinhas.
Em lugar disso, ele foi parar na zona norte de Kalamazoo, e comprou e fumou crack, algo que, segundo o que declarou à polícia posteriormente, jamais havia experimentado. Dawkins também bebeu álcool pela primeira vez em anos. Em determinado momento, vestiu uma fantasia de Halloween, um terno e chapéu em estilo de gangster dos anos 20 que ele havia comprado em uma loja de roupas usadas, e vestiu também uma máscara ameaçadora, da cor da pele. Ele apanhou o revólver e saiu caminhando pelo quarteirão, procurando festas de Halloween nas imediações do campus.
O primeiro chamado à linha de emergência da polícia veio à 1h40min, de acordo com o relatório policial. Dawkins havia abordado um grupo de pessoas na rua, diante de uma casa onde estava acontecendo uma festa. Um jovem chamado Jarrod Keller perguntou a Dawkins o que era sua fantasia. Dawkins subitamente sacou o revólver e o apontou para a cabeça de Keeler. Porque achava que o revólver era parte da fantasia, este tentou apanhá-lo, e Dawkins saiu correndo pela rua, disparando para cima.
Ele foi parar na frente da casa de Bowman, que estava na varanda fumando um cigarro. Dawkins lhe pediu dinheiro. Quando Bowman recusou e disse que ele devia ir embora, Dawkins atirou em seu peito.
Um policial que estava por perto ouviu o tiro, solicitou apoio e caminhou na direção da casa. Ele viu Dawkins pela janela. Dawkins começou a bater nas portas dos quartos das pessoas com quem Bowman dividia a casa. Uma delas saiu pela janela, para o topo da varanda, a fim de escapar. Outra trancou a porta.
O terceiro dos companheiros de casa de Bowman, James Honz, abriu a porta, e Dawkins entrou no quarto com o revólver erguido e ordenou que ele se sentasse na cama. Depois apontou o revólver para a cabeça de Honz e ordenou que ele se ajoelhasse. Dawkins perguntou a Honz se ele tinha medo de morrer, e disse que se preparasse para encontrar Jesus.
Uma equipe tática de seis policiais chegou à casa, depois que Dawkins usou um frigobar e um condicionador de ar para fazer uma barricada na porta do quarto. Quando a polícia tentou derrubar a porta, ele atirou pela parede e gritou que mataria qualquer um que entrasse.
Um dos policiais tentou conversar com Dawkins, perguntando se ele acreditava em Deus e dizendo que Deus o perdoaria. Dawkins deixou que Honz saísse, depois fechou a porta e pediu um telefone. Ele queria ligar para Knutsen e as crianças, e depois se matar com um tiro. Dawkins terminou por sair do quarto às quatro da manhã, com as mãos para cima.
O detetive que testemunhou a confissão de Dawkins em vídeo, Michael Slancik, disse que ele parecia atordoado e incerto sobre os motivos de suas ações. "Ele não foi grosseiro, não estava gritando, não estava pulando pela sala, nada disso", disse o detetive Slancik. "Arrisco-me a dizer que estava calmo".
A vítima, Bowman, teve uma infância difícil e sofria de uma deficiência de aprendizado grave a ponto de levá-lo a aprender a ler só aos 17 anos. Ele por fim conseguiu um diploma de segundo grau no supletivo, se casou e mais tarde se divorciou, e abriu uma empresa. Bowman era figura bem conhecida naquela região de Kalamazoo. Fazia parte da guarda voluntária do bairro e entregava comida a vizinhos idosos ou desempregados.
"Tom não era uma pessoa perfeita, mas ele tentava, e sua morte deixou um grande vazio", disse Kenneth Bowman, irmão da vítima.
Dawkins foi considerado culpado de nove acusações, incluindo homicídio doloso. No julgamento, Sharon Hilton, a mãe de Bowman, o confrontou e disse que o perdoava, apesar da dor que ele causou.
"Obviamente não foi fácil", disse Hilton, cristã devota, em entrevista por telefone de sua casa, em Crab-Orchard, Tennessee. Hoje, ela sente mais pena que qualquer outra coisa, quanto a Dawkins, e disse estar feliz por ele ter encontrado na literatura um propósito para sua vida. "Não consigo pensar em nada mais horrível do que ter de passar a vida na prisão", ela disse.
BARREIRAS ÉTICAS E COMERCIAIS
É surpreendente que tão pouca ficção contemporânea tenha emergido das penitenciárias dos Estados Unidos. Há mais de dois milhões de pessoas encarceradas no país, e muitas prisões têm programas de treinamento para escritores. A PEN America opera um programa de escrita que beneficia mais de 20 mil prisioneiros. Mas as grandes editoras dos Estados Unidos lançam muito pouca ficção escrita por presidiários, já que elas raramente avaliam o trabalho de escritores que não sejam representados por agentes, e em muitos casos hesitam diante dos percalços logísticos e éticos de trabalhar com condenados.
Em 1981, a Random House publicou "In the Belly of the Beast", uma coletânea de escritos de Jack Henry Abbott, um presidiário que cumpriu sentenças de prisão por assalto a banco e outros crimes. Ele fez amizade com o escritor Norman Mailer, que pressionou as autoridades pela libertação de Abbott. Pouco depois de ser libertado, Abbott voltou a ser preso em Nova York por matar um garçom a facadas.
A primeira emenda à constituição dos Estados Unidos, que protege a liberdade de expressão, permite que prisioneiros escrevam e publiquem livros, e por isso as barreiras à publicação tendem a ser comerciais e éticas, e não legais. Em alguns Estados, condenados são proibidos de lucrar pessoalmente com obras de não ficção que descrevam seus crimes, e o dinheiro gerado por essas obras pode ser confiscado e colocado em um fundo em benefício das vítimas ou de seus familiares.
Em 1991, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que uma lei estadual de Nova York conhecida como "lei do Filho de Sam" [o Filho de Sam foi um famoso assassino serial dos anos 70], que proibia criminosos condenados de escrever livros ou criar outras formas de entretenimento que tivessem por base os seus crimes, era ilegal. A corte determinou que a lei era genérica demais e violava a proteção à liberdade de expressão, decidindo em favor do queixoso, a editora Simon & Schuster, que havia assinado contrato com o mafioso condenado Henry Hill para um livro sobre sua vida.
A Scribner enfrenta um desafio complicado na promoção de "The Graybar Hotel". Embora as resenhas iniciais tenham sido em geral positivas, "algumas pessoas se assustaram com as circunstâncias do escritor e têm sentimentos contraditórios quanto a apoiar alguém que cometeu o tipo de crime que ele cometeu", disse Kathy Belden, a editora de Dawkins.
As pessoas que conheceram Dawkins durante a pós-graduação ficaram chocadas e enervadas pelo crime que ele cometeu. Depois de sua detenção, Jaimy Gordon, uma de suas antigas professoras de literatura, entrou em contato com Knutsen. Ninguém procurou Dawkins.
Cerca de um ano depois do julgamento, Knutsen e as crianças se mudaram para Portland, Oregon. Ela fala com Dawkins ao telefone quase todos os dias e se refere a ele como seu parceiro e melhor amigo. Ela jamais superou o choque do que aconteceu.
"É como uma bomba que explode sem parar", disse Knutsen.
Elijah, que acaba de se formar o segundo grau, sofreu ansiedade aguda e repetiu de ano no ensino médio. Lily Rose, 16 ficou tão perturbada durante a última visita da família a Dawkins, três anos atrás, que se recusou a entrar na penitenciária para vê-lo. Henry, 22, continua próximo a Dawkins e fala com ele diversas vezes por semana. Às vezes sonha ter encontrado Dawkins na mercearia, e depois acorda e se lembra de que ele jamais sairá da prisão.
Nos primeiros 10 meses de seu encarceramento, Dawkins não conseguia escrever. A cadeia estava lotada e caótica, e ele só pensava em suicídio. Quando foi colocado em quarentena, e submetido a avaliações psicológicas antes de ter uma penitenciária designada, ele escreveu a primeira linha do conto "County", inspirada pela sua experiência ao ser encarcerado pela primeira vez na cadeia do condado de Kalamazoo. Como Dawkins, o narrador sofre os efeitos da abstinência de opiáceos e é visto como em risco de suicídio.
Escrever se tornou um escape para Dawkins.
"Parte de mim compreendeu que, se eu queria sobreviver a isso, teria de encontrar um propósito", ele disse.
Com uma máquina de escrever elétrica enviada por seus pais, ele datilografava contos e os enviava pelo correio à sua irmã mais nova, que os submetia a revistas literárias. A maioria dessas tentativas era recebida com silêncio ou rejeição, mas alguns dos contos foram publicados em revistas menores.
No ano passado, Jarrett Haley, fundador da pequena revista literária "Bull" entregou uma pequena seleção de contos de Dawkins à agente literária Sandra Dijkstra, que poucos dias depois assinou contrato para representar o escritor. Dijkstra vendeu os contos à Scribner por um adiantamento de algumas centenas de milhares de dólares. A parcela de Dawkins formará um fundo para a educação de seus filhos.
Nan Graham, vice-presidente e editora chefe da Scribner, disse que quando leu os contos pela primeira vez, ficou espantada por Dawkins ter conseguido "criar histórias tão devastadoras com base no tédio".
"Muita gente tenta aprender a escrever, na prisão, mas não há muita gente que chegue à prisão com um mestrado e com a capacitação necessária a escrever ficção", ela disse.
Dawkins, um homem magro e forte, com cabelos grisalhos e ralos, um rosto estreito e olhos castanhos muito observadores, parece retraído e livresco. Em duas horas e meia de entrevista na Lakeland Correctional Facility, ele pondera suas palavras cuidadosamente e parece mais confortável ao falar dos escritores que admira - Thomas Pynchon, Don DeLillo, Lydia Davis, George Saunders, Joy Williams. A linha de abertura de "O Arco-Íris da Gravidade", de Pynchon, está tatuada em seu peito: "Um uivo atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas não há com o que compará-lo agora".
Recentemente, Dawkins vem trabalhando em um romance futurista que se passa em uma imensa prisão subterrânea parecida com uma colmeia. O ambiente surreal parece refletir algo que para Dawkins ainda é difícil de aceitar: a realidade de que é provável que ele nunca saia da prisão.
"Não sei se aceitei isso", ele diz. "Às vezes, caminhando pelo pátio, me apanho pensando como é que vim parar aqui".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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