Esteta, mas não formalista, Jean-Pierre Melville exige nossa atenção
"Ele pode ser considerado, sob qualquer ponto de vista, o iniciador da nouvelle vague", escreveu o crítico Jean Domarchi sobre Jean-Pierre Melville em artigo para os "Cahiers du Cinéma" em 1959.
De fato, a realização ágil, as movimentadas cenas de rua, o baixo custo de produção e o diálogo transversal com o cinema de série B hollywoodiano –que filmes como "Bob, o Jogador" (1955) e "Dois Homens em Manhattan" (1959) trazem de forma tão evidente– anunciaram parte imensa da receita de "Acossado" (1960), longa de estreia de Jean-Luc Godard, em que Melville, não à toa, faria uma ponta.
Mas a situação de Melville –homenageado com uma mostra no IMS-SP até o dia 8– é mais complexa: pioneiro da nouvelle vague, mas não exatamente parte dela.
Continuador do thriller policial e do "film noir", mas numa época em que a popularidade dos gêneros tradicionais se extinguira e deles restavam silhuetas fantasmáticas perambulando por boates decadentes, terrenos baldios e linhas de trem de periferias industriais –como nas primeiras sequências do formidável "Técnica de Um Delator" (1962), que cristaliza o estilo pelo qual o diretor ficaria mais conhecido, sua versão autoral do filme clássico de roubo e fuga que dão errado.
Um cineasta fronteiriço, portanto, suspenso entre duas idades do cinema, o que talvez justifique sua predileção por personagens que vivem no limbo, afundados em seus sobretudos, atrás de um copo de uísque e da fumaça de cigarros, como a figura imortalizada por Alain Delon em "O Samurai" (1967).
Cineasta da melancolia e de um gosto baudelairiano pelos eflúvios da vida noturna nos centros urbanos, Melville sempre demonstrou ternura pelos seres notívagos, que perduram em bares onde uma banda de jazz ainda toca para o derradeiro cliente embriagado ao balcão.
O começo de "Bob, o Jogador" se dá no final da madrugada, interregno em que as últimas criaturas noturnas cruzam o caminho de quem já se apressa para o trabalho, situação emblemática da estética de Melville.
Visto em retrospecto, o primeiro longa-metragem, "O Silêncio do Mar" (1949), parece ponto fora da curva, uma forma interiorizada de relato romanesco, anterior à estilização maneirista das suas releituras do "film noir".
Mas já há nele a inconfundível direção de atores, que faz todo um mundo de sentimentos secretos e ambíguos se exprimir tão somente por gestos e olhares.
Essa maestria se repetiria em diversos outros momentos, como em todos os diálogos com Emmanuelle Riva e Jean-Paul Belmondo em "Léon Morin, o Padre" (1961), ao mesmo tempo o mais erótico e o mais celibatário dos filmes já feitos.
Enquanto discutem assuntos teológicos e existenciais, o padre e sua devota falam com o corpo outra linguagem, plena de sensualidade.
Há também aquela cena de "Bob, o Jogador" em que o rapaz pergunta à garota se ela se arrepende de ter dormido com ele, e não com Bob. Ela responde que não.
A câmera, então, mostra os pequenos pés da moça calçados com pantufas de tamanho bem maior que o dela.
Rapidamente deduzimos que as pantufas pertencem a Bob e que, entre o "não" dito por ela e o que realmente pensou, havia uma defasagem não confessada verbalmente, mas revelada visualmente.
O diálogo é fendido pela combinação discrepante entre as falas e os sinais corporais que as contradizem.
Pela ênfase num detalhe, Melville expõe sujeitos divididos, que dizem uma coisa enquanto sentem outra.
Ele pode ser considerado um esteta, mas não um formalista virtuoso: sua mise-en-scène, ainda que cheia de efeitos puramente estilísticos, escapa ao estereótipo da "bela forma", haja vista a montagem ágil e amiúde displicente, com quebras bruscas de eixo, saltos desconcertantes, cortes inopinados a contrastar com a composição meditada dos planos.
O ápice do estilo melvilliano reside no silêncio glacial das sequências de roubo em "O Círculo Vermelho" (1970) e "Expresso para Bordeaux" (1972), filmadas com concentração extrema, uma atenção de ourives. A mesma atenção que seu cinema grandioso merece de nós.
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AGENDA
QUARTA (6)
18h "Sob o Nome de Melville" (Olivier Bohler; 2008)
19h30 "24 Horas na Vida de um Palhaço" (Melville; 1946)
21h30 "O Samurai" (Melville, 1967)
QUINTA (7)
17h30 "No Clima de Melville" (Benjamin Clavel; 2017)
19h "24 Horas na Vida de um Palhaço" (Melville; 1946) + "O Silêncio do Mar" (Melville; 1949)
21h15 "Léon Morin, o Padre" (Melville; 1961)
SEXTA (8)
19h "Bob, o Jogador" (Melville; 1955)
21h "O Exército das Sombras" (Melville; 1969)
Livraria da Folha
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