análise
Pagar juros é escolha racional, não imposição
Pagar o banco ou a luz? Resposta simples: a luz. Ficar no escuro para pagar o banco? Simplicidade e simplismo facilmente se confundem.
Pagar o empréstimo não é imposição moral. É escolha racional. Em 2014, Ricardo Hausmann, brilhante economista venezuelano, sugeriu que a Venezuela desse o calote na dívida externa. O país estava inadimplente com importadores e empresas farmacêuticas, que reagiam retirando seus produtos. A crise humanitária se assomava. Curiosamente, o governo Maduro até hoje honra seus compromissos com os detentores da dívida externa, muitos deles venezuelanos bem conectados, segundo Hausmann. Coisas do socialismo do século 21.
E o Brasil? O deficit do governo é 10% do PIB. Ou toma-se uma providência, ou quebraremos. Boa parte do déficit é juro sobre a dívida pública. O governo propõe restringir o aumento do gasto primário à inflação do ano anterior (a PEC do teto dos gastos ). O juro sobre a dívida pública não entra na conta do teto.
Por que não cortar exatamente aí, na conta de juro? Esclarecimento: a maior parte da conta do juro é inflação. O que importa é o juro real, descontada a inflação, e não o juro nominal (que inclui inflação). O juro real é uma fração bem menor do deficit, ainda que incomodamente alta.
Há duas razões para o gasto com juro não entrar no teto.
O Banco Central calibra a taxa Selic, juro nominal de curto prazo, para atingir a meta de inflação em certo período. Portanto, a política monetária afeta o gasto nominal. Incluir o juro nominal no teto restringiria a política monetária, o que terminaria em mais juro adiante. Aprovada a PEC, haverá mais espaço para que a Selic caia, porque a política fiscal ficará mais sustentável.
Por que então não incluir o gasto com juro real, aquele que não contém a inflação, na conta do teto dos gastos? Porque o dispêndio com juro real não é escolha voluntarista.
O governo não controla o juro real de mercado, que determina o custo de financiamento de sua dívida. Assim como o leitor não decide o juro do financiamento do carro. Não se corta o juro real por escolha orçamentária ou ato administrativo. Por isso, não adianta colocá-lo na conta do teto de gasto.
O alto juro real brasileiro é uma lição de humildade para os economistas. Tentamos até trocar o pneu com o carro andando, na busca do elusivo equilíbrio virtuoso do juro baixo. Abaixou-se a Selic. O custo da dívida diminuiria. Melhoraria a situação fiscal, diminuindo o juro real que os investidores exigiriam para financiar o Brasil. Isso foi em 2012. O resto é história.
Poucos economistas discordam de que, em parte, o passado nos condena a juro real alto. Calotes e inflação alta abundaram. O presente agrava a pena. Novamente temos uma situação fiscal insustentável, se nada for feito.
O teto provoca um temor exagerado pelos gastos sociais. Suponhamos o pior, que tenhamos que cortar gastos sociais porque deixamos o juro fora do teto. A escolha não seria entre pagar o banco ou a luz. Seria entre pagar a luz hoje ou muito mais cara amanhã. Pode valer a pena, como é o caso da Venezuela. Mas não nos iludamos: o investidor cobrará o caloteiro com juro mais alto.
Pagá-lo não é dogma. É pragmatismo. Assim como não pagar. Não somos Venezuela. Por enquanto. A PEC do teto dos gastos, sem incluir juros, é uma das medidas que ajudará a impedir que o calote seja a melhor opção.
JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO, 43, é doutor em economia (Universidade Stanford) e professor titular do Insper
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