Auroville, a cidade onde é possível viver totalmente sem dinheiro
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No fim do ano, a Índia aboliu as notas de maior valor afetando (quase) todo mundo |
É preciso ter muito senso de humor quando o governo declara que a maioria das notas que você tem na carteira não vale mais nada. Foi o que aconteceu na Índia: no fim do ano passado, o país retirou de circulação as cédulas valor mais alto.
Em um país com 1,2 bilhão de habitantes, a corrida para trocar as notas de 500 (R$ 25) e mil (R$ 50) rúpias ou depositar o valor em contas provocou grandes filas nos bancos —as cédulas que deixaram de valer correspondiam a 85% de todo o dinheiro em circulação no país.
A decisão do governo indiano pretende combater a corrupção, o mercado negro e a evasão de divisas, já que muitos trabalhadores recebem em dinheiro vivo.
Em novembro, poucos eram os sinais de revolta nas filas: as pessoas concordavam com a medida. Mas, assim que as notas saíram de circulação, os jornais noticiaram que qualquer transação exigia negociações complicadas.
Houve festas de casamento em que convidados tiveram que pagar a conta. O governo chegou a declarar, por exemplo, que os pedágios seriam grátis porque não haveria dinheiro suficiente para troco.
Talvez o único lugar na Índia onde o desaparecimento das cédulas não tenha produzido nenhum efeito seja Auroville, também chamada de "A Cidade do Amanhecer", localizada próximo a Pondicherry, no sul do país.
A cidade foi fundada a partir dos princípios da ioga integral e é uma comunidade internacional, onde vivem 50 mil pessoas de 50 países, inclusive do Brasil.
A MÃE E A 'BOLA DE GOLFE DOURADA'
Auroville | ||
Alfassa é conhecida como a 'Mãe' |
Auroville foi fundada em 1968 como um povoado internacional dedicado à busca de uma vida sustentável e harmoniosa.
A fundadora é uma parisiense chamada Mirra Alfassa (1878-1973) —que depois seria conhecida como "a Mãe".
Filha de mãe egípcia e pai turco, ela nasceu na França e estudou ocultismo na Argélia. Em 1914, conheceu na Índia o poeta, nacionalista e professor de ioga Sri Aurobindo, seu mentor e companheiro.
Alfassa sonhava com uma sociedade sem dinheiro, na qual o trabalho coletivo e a troca de trabalho por serviços tornariam moedas e cédulas irrelevantes.
A comunidade, que ocupa atualmente uma área de 20 quilômetros quadrados, plantou um milhão de árvores e transformou um terreno deserto e abandonado em área verde.
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O Parque da Unidade é um dos locais que reúne exemplares do um milhão de árvores plantadas pelos moradores |
Mas não se pode dizer que a Auroville de hoje é a sociedade ideal que Alfassa imaginou: sua história inclui crimes, conflitos e constantes dúvidas sobre sua transparência financeira.
Mesmo assim, o empreendimento floresce: os aurovilianos têm empresas de todo o tipo, desde tecnológicas até têxteis.
Seu centro nevrálgico é o Matrimandir ("Templo da Mãe Divina", em sânscrito), um local de meditação que se assemelha a uma gigantesca bola de golfe dourada.
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O Matrimandir, ou Templo da Mãe Divina, tem 30 m de altura e 36 m de diâmetro |
SONHANDO COM CAFÉ
No Café dos Sonhadores, perto do centro de informações para visitantes, ofereço um café a uma auroviliana recente em troca da sua história.
"Os sonhadores fazem o melhor café", me diz a mulher, que prefere ficar no anonimato. "Mas é caro."
O garçom pede o número da conta dela e ela indica que sou eu quem vai pagar.
"Cada um tem uma conta onde é depositada a sua manutenção. Estou aqui há três meses e, no primeiro ano, cada pessoa tem que financiar a sua estada", explica.
Muitos residentes têm rendimentos próprios ou o apoio econômico de parentes e amigos.
A manutenção é uma quantia mensal normalmente suficiente para atender às necessidades básicas em Auroville. O valor é pago na unidade comercial ou no serviço comunitário onde eles trabalham.
"Na Suíça eu era pobre, mas aqui posso me dar ao luxo de doar dinheiro."
Auroville | ||
O arquiteto francês Roger Anger desenhou Auroville no formato de uma galáxia, em que várias "linhas de força" parecem desenrolar-se do ponto central onde fica o Matrimandir ou Templo da Mãe Divina |
A nova auroviliana aparenta ter menos que seus 70 anos.
"Isso é por causa da minha dieta e porque ando de bicicleta", garante.
Com uma bata de algodão e um colar que, explica, simboliza a amizade, ela irradia um grande entusiasmo com a sua nova vida.
"Eu trabalhava com tecnologia da informação na Nestlé, na Suíça... Ainda não posso acreditar", exclama, entre risos.
O contraste entre a multinacional altamente tecnológica e os centros de saúde e lojas de roupas artesanais é absurdo.
"Mas eu tinha que criar meu filho. Mas passei a procurar uma comunidade e, quando encontrei a página de Auroville na internet, soube imediatamente que este era o lugar em que eu queria estar", lembra.
"Foi uma energia estranha."
Em Auroville não existe propriedade privada da terra, de casas ou comércio. Tudo é coletivo.
A página da comunidade na internet afirma que "em Auroville o trabalho não é uma forma de ganhar o sustento, mas sim uma forma de servir ao divino".
CONTRIBUIR PARA A UTOPIA
Auroville | ||
Moradora sonha em ver veículos elétricos nas estradas de Auroville |
"Minha missão é trazer o transporte elétrico para Auroville", explicou. "Fiquei horrorizada ao ver tantas motocicletas!"
Por isso, ela está financiando o projeto e atendendo os visitantes no centro de informações. Ela fez amigos e está decidida a passar o resto dos dias na comunidade.
"Existe algo neste lugar que é maior do que a gente", diz.
Embora não seja devota dos ensinamentos da "Mãe" e seja mais realista do que peregrina, ela fala sobre algo parecido com destino.
"Quando se recebe um chamado, as coisas fluem", diz.
E o que ela oferece é mais do que tempo de trabalho.
"Tenho uma aposentadoria, assim não preciso que me paguem. Simplesmente quero contribuir com esta ideia."
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Existem em Auroville mais de uma dezena de fazendas de diferentes tamanhos, onde não só é possível semear, mas aprender a cultivar a terra |
"Auroville faz com que as coisas sejam mais fáceis se você tem um sonho", continua.
No entanto, o sonho de Auroville de libertar-se do dinheiro "ainda não está funcionando muito bem", admite ela. "Mas não lidamos com dinheiro, o que é agradável."
"Quem não tem rendimentos recebe ajuda, mas é um valor que dá apenas para viver modestamente. O importante é fazer amigos na comunidade e encontrar uma maneira de contribuir com a sua energia", conclui.
O intervalo de descanso termina e ela volta ao seu posto no centro de informações.
Em muitas partes do mundo, pessoas relativamente saudáveis e aposentadas contribuem com seu tempo e conhecimento para o sustento das sociedades.
O que me surpreendeu depois de conversar com esta auroviliana é saber que ela vive numa comunidade na qual efetivamente paga para trabalhar.
E, ao que parece, sente uma satisfação que o dinheiro não consegue comprar.
AS REGRAS DE AUROVILLE
Para viver na "Cidade do Amanhecer" é preciso conhecer algumas regras:
>> Auroville não pertence a ninguém em particular, mas a toda a humanidade. No entanto, para viver em Auroville é preciso ser um servidor voluntário da consciência divina.
>> Auroville será o lugar de uma educação infinita, do progresso constante e de uma juventude que nunca envelhece.
>> Auroville pretende ser a ponte entre o passado e o futuro, aproveitando todas as descobertas para avançar rumo ao futuro.
>> Auroville será o lugar de uma pesquisa material e espiritual que vai resultar na manifestação viva da unidade humana verdadeira.
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