Leia a íntegra do discurso de Obama ao receber o Nobel da Paz
Leia a íntegra do discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz pelo presidente Barack Obama, feito nesta quinta-feira (10) em Oslo, na Noruega, conforme fornecido pela Casa Branca:
Vossas Majestades, Vossas Altezas Reais, distintos membros do Comitê Norueguês do Nobel, cidadãos dos Estados Unidos e cidadãos do mundo:
Recebo esta honra com profunda gratidão e profunda humildade. É um prêmio que diz respeito a nossas mais elevadas aspirações --que, apesar de toda a crueldade e todo o sofrimento do mundo, não somos meros prisioneiros do destino. Nossas ações têm importância e podem conduzir a história na direção da justiça.
Contudo, eu seria omisso se não reconhecesse a controvérsia considerável que gerou sua decisão generosa. Ela acontece em parte porque estou no início, e não no fim, de meu trabalho no palco mundial. Comparadas com as de alguns gigantes da história que já receberam este prêmio --[o médico e pastor franco-alemão Albert] Schweitzer e King, [o diplomata americano George C.] Marshall e [Nelson] Mandela--, minhas realizações são pequenas. E há os homens e as mulheres em todo o mundo que foram encarcerados e espancados na busca pela justiça; aqueles que labutam em organizações humanitárias para aliviar o sofrimento; os milhões não reconhecidos cujos atos silenciosos de coragem e compaixão inspiram até mesmo os mais endurecidos dos críticos. Não posso argumentar contra aqueles que veem esses homens e essas mulheres --alguns deles conhecidos, outros obscuros para todos menos aqueles a quem ajudam-- como sendo muito mais merecedores desta honra do que eu.
Mas talvez o problema mais profundo que cerca a entrega deste prêmio a mim seja o fato de que sou comandante-em-chefe de um país que se encontra no meio de duas guerras. Uma dessas guerras está se concluindo. A outra é um conflito que a América não procurou; um conflito no qual 43 outros países --incluindo a Noruega-- se unem a nós em um esforço para defender a nós mesmos e a todos os países de outros ataques.
Mesmo assim, estamos em guerra, e eu sou responsável pelo envio de milhares de jovens americanos para combater em uma terra distante. Alguns irão matar. Alguns serão mortos. Assim, venho aqui hoje com a consciência aguda do custo do conflito armado, e repleto de perguntas difíceis sobre a relação entre guerra e paz e sobre nosso esforço de substituir uma pela outra.
Essas perguntas não são novas. A guerra, sob uma forma ou outra, apareceu com o primeiro homem. Na aurora da história, sua moralidade não era questionada; ela era simplesmente um fato, como a seca ou a doença --era a maneira com a qual as tribos, e então as civilizações, buscavam poder e resolviam suas diferenças.
Com o passar do tempo, enquanto códigos de leis buscaram controlar a violência no interior de grupos, filósofos, clérigos e estadistas buscaram regular o poder destrutivo da guerra. Surgiu o conceito de uma "guerra justa", sugerindo que a guerra é justificada apenas quando atende a determinadas precondições: se for travada como derradeiro recurso ou para a autodefesa; se a força empregada for proporcional, e se, sempre que possível, os civis forem poupados da violência.
Durante a maior parte da história, esse conceito de guerra justa raramente foi respeitado. A capacidade dos seres humanos de inventar novas maneiras de matar uns aos outros mostrou-se inesgotável, assim como nossa capacidade de isentar de misericórdia aqueles que têm aparência diferente da nossa ou que adoram um deus diferente. As guerras entre exércitos deram lugar a guerras entre países --guerras totais nas quais a distinção entre combatentes e civis perdeu nitidez. Em um prazo de 30 anos, um morticínio dessa espécie iria engolfar este continente por duas vezes. E, embora seja difícil conceber uma causa mais justa que a derrota do Terceiro Reich e das potências do Eixo, a Segunda Guerra Mundial foi um conflito no qual o número total de civis que morreram foi superior ao de soldados que tombaram.
Na esteira de tamanha destruição, e com a chegada da era nuclear, tornou-se claro, tanto para vencedores quanto para vencidos, que o mundo precisava de instituições para prevenir outra Guerra Mundial. E assim, um quarto de século depois de o Senado dos Estados Unidos ter rejeitado a Liga das Nações --uma ideia pela qual [o presidente americano] Woodrow Wilson recebeu este prêmio--, a América liderou o mundo na construção de uma arquitetura para manter a paz: um Plano Marshall e uma organização das Nações Unidas, mecanismos para reger como se travam guerras, tratados para proteger os direitos humanos, prevenir genocídios e restringir as armas mais perigosas.
Esses esforços tiveram êxito de muitas maneiras. Sim, foram travadas guerras terríveis e cometidas atrocidades. Mas não houve uma Terceira Guerra Mundial. A Guerra Fria terminou com multidões jubilosas demolindo um muro. O comércio vem interligando boa parte do mundo. Bilhões de pessoas foram tiradas da pobreza. Os ideais de liberdade, autodeterminação, igualdade e do respeito às leis têm avançado, com tropeços. Somos os herdeiros da perseverança e da presciência de gerações passadas, e esse é um legado do qual meu país se orgulha, com razão.
Uma década depois de iniciado um novo século, essa arquitetura está vergando sob o peso de novas ameaças. O mundo pode não mais estremecer diante da perspectiva de guerra entre duas superpotências nucleares, mas a proliferação nuclear pode elevar o risco de catástrofes. O terrorismo é há muito tempo uma tática, mas a tecnologia moderna permite que alguns poucos homens dominados por uma ira descomunal massacrem inocentes em escala medonha.
Ademais, as guerras entre nações vêm, cada vez mais, dando lugar a guerras no interior de nações. O ressurgimento dos conflitos étnicos ou sectários, o crescimento de movimentos separatistas, insurgências e Estados falidos, vêm cada vez mais prendendo civis na armadilha do caos sem fim. Nas guerras de hoje, muito mais civis do que soldados são mortos; são lançadas as sementes de conflitos futuros, sociedades civis são dilaceradas, refugiados se acumulam e crianças são marcadas para sempre.
Não trago comigo hoje uma solução definitiva aos problemas da guerra. O que sei, sim, é que enfrentar esses desafios vai exigir a mesma visão, o mesmo trabalho árduo e a mesma persistência daqueles homens e mulheres que agiram tão corajosamente, décadas atrás. E vai exigir de nós uma reflexão nova sobre as noções de guerra justa e os imperativos de uma paz justa.
Precisamos começar por reconhecer a verdade dura de que não vamos erradicar os conflitos violentos durante nosso tempo de vida. Haverá momentos em que as nações --agindo individualmente ou em conjunto-- verão o recurso à força como não apenas necessário, mas moralmente justificado.
Faço esta afirmação tendo em mente o que disse Martin Luther King nesta mesma cerimônia, anos atrás: "A violência nunca traz paz permanente. Ela não soluciona nenhum problema social: apenas cria problemas novos e mais complicados." Sendo alguém que está aqui hoje em consequência direta do trabalho de toda a vida de King, sou um testemunho vivo da força moral da não violência. Sei que não há nada de fraco, nada de ingênuo nas crenças e nas vidas de Gandhi e de King.
Mas, como chefe de um Estado que fez um juramento de proteger e defender meu país, não posso me deixar guiar unicamente pelos exemplos deles. Enfrento o mundo como ele é, e não posso ficar parado, sem nada fazer, diante de ameaças contra a população americana. Pois que ninguém se engane: o mal existe no mundo, sim. Um movimento não violento não poderia ter freado os exércitos de Hitler. Negociações não conseguirão convencer os líderes da Al Qaeda a entregarem suas armas. Dizer que a força às vezes é necessária não constitui um chamado ao cinismo --é o reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão.
Menciono esse ponto porque em muitos países existe uma ambivalência profunda em relação à ação militar hoje, não importa qual seja a causa. Às vezes, essa ambivalência se soma a uma desconfiança reflexiva em relação à América, a única superpotência militar do mundo.
Contudo, o mundo deve lembrar que não foram apenas instituições internacionais --não foram apenas tratados e declarações-- que levaram a estabilidade ao mundo do pós-Segunda Guerra Mundial. Sejam quais forem os erros que cometemos, a verdade simples é a seguinte: os Estados Unidos da América vêm ajudando a subvencionar a segurança global há mais de seis décadas com o sangue de nossos cidadãos e a força de nossas armas. O serviço e o sacrifício de nossos homens e mulheres uniformizados vêm promovendo a paz e a prosperidade da Alemanha à Coreia e permitiu que a democracia deitasse raízes em lugares como os Bálcãs.
Temos carregado esse fardo não porque buscamos impor nossa vontade. Nós o temos feito em nome do autointeresse esclarecido --porque buscamos um futuro melhor para nossos filhos e netos e acreditamos que as vidas deles serão melhores se os filhos e netos de outros puderem viver em liberdade e prosperidade.
Assim, os instrumentos de guerra têm, de fato, um papel a exercer na preservação da paz. Entretanto, essa verdade precisa coexistir com outra: a de que, não importa quão justificada seja, a guerra promete tragédias humanas. A coragem e o sacrifício do soldado são cheios de glória, expressando devoção a seu país, à causa e a seus companheiros de armas. Mas a guerra, em si, nunca é gloriosa, e jamais devemos alardeá-la como tal.
Assim, parte de nosso desafio consiste em conciliar essas duas verdades aparentemente inconciliáveis-- que a guerra às vezes é necessária e que a guerra é, em algum nível, uma expressão de sentimentos humanos. Concretamente, precisamos direcionar nosso esforço à tarefa que o presidente Kennedy pediu, muito tempo atrás. Ele disse: "Busquemos uma paz mais prática, mais alcançável, baseada não em uma revolução repentina na natureza humana, mas em uma evolução gradual das instituições humanas."
Qual poderia ser a aparência dessa evolução? Quais poderiam ser esses passos práticos?
Para começar, acredito que todos os países --fracos e fortes em igual medida-- precisam pautar-se por padrões que rejam o recurso à força. Como qualquer chefe de Estado, eu me reservo o direito de agir unilateralmente se isso for necessário para defender meu país. Não obstante, estou convencido de que pautar-se por padrões fortalece aqueles que o fazem e isola --e enfraquece-- os que não o fazem.
O mundo se uniu em torno da América após os ataques de 11 de setembro e continua a apoiar nossos esforços no Afeganistão, devido ao horror daqueles ataques sem sentido e devido ao princípio reconhecido da autodefesa. Do mesmo modo, o mundo reconheceu a necessidade de enfrentar Saddam Hussein quando ele invadiu o Kuait --um consenso que transmitiu a todos uma mensagem clara sobre o custo da agressão.
Ademais, a América não pode insistir que outros obedeçam as regras do caminho se nós mesmos nos recusarmos a obedecê-las. Pois, quando não o fazemos, nossa ação pode parecer arbitrária e pode solapar a legitimidade de intervenções futuras, por mais justificadas que possam ser.
Isso se torna particularmente importante quando a finalidade da ação militar vai além da autodefesa ou da defesa de uma nação contra um agressor. Mais e mais, todos nós enfrentamos perguntas difíceis sobre como prevenir a matança de civis por seus próprios governos ou sobre como pôr fim a uma guerra civil cujo sofrimento e violência podem engolfar uma região inteira.
Acredito que a força pode ser justificada por motivos humanitários, como foi o caso nos Bálcãs, ou em outros lugares que foram marcados pela guerra. A inação fere nossa consciência e pode levar a intervenções mais custosas mais adiante. É por isso que todas as nações responsáveis precisam subscrever o papel que forças militares dotadas de um mandato claro podem exercer para manter a paz.
O compromisso da América com a segurança global nunca irá esmorecer. Mas, em um mundo em que as ameaças são mais difusas e as missões são mais complexas, a América não pode atuar sozinha. É esse o caso no Afeganistão. É esse o caso em Estados falidos como a Somália, onde ao terrorismo e à pirataria se somam a fome e o sofrimento humano. E, lamentavelmente, vai continuar a ser o caso em regiões instáveis ainda por anos.
Os líderes e soldados dos países da Otan --e outros amigos e aliados-- demonstram essa verdade através da habilidade e coragem que vêm manifestando no Afeganistão. Em muitos países, porém, existe uma desconexão entre os esforços daqueles que servem e a ambivalência do público mais amplo. Compreendo porque a guerra não é popular. Mas também sei do seguinte: a crença na ideia de que a paz é desejável raramente é suficiente para se alcançar a paz. A paz requer responsabilidade. A paz implica em sacrifício. É por isso que a Otan continua a ser indispensável. É por isso que precisamos reforçar a ONU e os esforços regionais de manutenção da paz, não deixando a tarefa a cargo de alguns poucos países. É por isso que honramos aqueles que retornam para casa depois de atuar em missões de manutenção da paz e treinamento no exterior, de Oslo a Roma; de Ottawa a Sydney; de Daca a Kigali --os honramos não como fazedores de guerra, mas como fazedores da paz.
Permitam que eu apresente um último ponto relativo ao uso da força. Ao mesmo tempo em que tomamos decisões difíceis sobre travar guerras, também precisamos refletir claramente sobre como as travamos. O Comitê do Nobel reconheceu essa verdade ao entregar seu primeiro prêmio da paz a Henry Dunant --fundador da Cruz Vermelha e força motriz por trás da Convenção de Genebra.
Onde a força se faz necessária, temos um interesse moral e estratégico em nos pautarmos por certas regras de conduta. E, ao mesmo tempo em que enfrentamos um adversário cruel que não se pauta por norma nenhuma, creio que os Estados Unidos da América precisam continuar a ser os defensores dos padrões na condução da guerra. É isso o que nos torna diferentes daqueles que combatemos. É essa a fonte de nossa força. Foi por isso que proibi o uso de tortura. Foi por isso que ordenei o fechamento da prisão de Guantánamo. E é por isso que reafirmei o compromisso da América em respeitar a Convenção de Genebra. Nós nos perdemos quando comprometemos os próprios ideais que lutamos para defender. E honramos esses ideais ao defender e respeitá-los não apenas quando fazê-lo é fácil, mas quando é difícil.
Falei sobre as questões que precisam estar presentes com toda seriedade em nossas mentes e nossos corações quando optamos por travar a guerra. Mas quero falar agora sobre nosso esforço para evitar tais escolhas trágicas e mencionar três maneiras pelas quais podemos construir uma paz justa e duradoura.
Em primeiro lugar, ao tratar com as nações que infringem as regras e as leis, acredito que precisamos desenvolver alternativas à violência que sejam suficientemente duras para mudar comportamentos --pois, se quisermos uma paz duradoura, as palavras da comunidade internacional precisam significar alguma coisa. Os regimes que infringem as regras precisam ser responsabilizados por isso. As sanções devem cobrar um preço real. A intransigência precisa ser respondida com pressão aumentada --e tal pressão só existe quando o mundo se posiciona junto, como um só.
Um exemplo urgente é o esforço para prevenir a proliferação de armas nucleares e para buscar um mundo sem essas armas. Na metade do século passado, nações concordaram em pautar-se por um tratado cuja barganha é clara: todos terão acesso à energia nuclear pacífica; aqueles que não têm armas nucleares abrirão mão de tê-las, e aqueles que as têm vão trabalhar para buscar o desarmamento. Estou engajado em respeitar esse tratado. Esse é um dos pontos fundamentais de minha política externa. E estou trabalhando com o presidente [Dmitri] Medvedev para reduzir os arsenais nucleares da América e da Rússia.
Mas cabe também a todos nós insistir que países como o Irã e a Coreia do Norte não burlem o sistema. Aqueles que alegam respeitar as leis internacionais não podem desviar seu olhar quando essas leis são desrespeitadas. Aqueles que se preocupam com sua própria segurança não podem ignorar o perigo de uma corrida armamentista no Oriente Médio ou no leste da Ásia. Aqueles que buscam a paz não podem ficar parados, sem nada fazer, enquanto nações se armam para a guerra nuclear.
O mesmo princípio se aplica aos que violam a lei internacional, brutalizando suas próprias populações. Quando ocorrem genocídio em Darfur, estupros sistemáticos no Congo ou repressão na Birmânia [Mianmar], é preciso haver consequências. E, quanto mais unidos estivermos, menos provável é que sejamos confrontados com a escolha entre intervenção armada e cumplicidade na opressão.
Isso me leva ao segundo ponto do qual quero tratar: a natureza da paz que buscamos. Pois a paz não é simplesmente ausência de conflitos visíveis. Apenas uma paz justa, baseada nos direitos e dignidade inatos de cada indivíduo, pode ser verdadeiramente duradoura.
Foi esse insight que moveu os redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, após a Segunda Guerra Mundial. Na esteira da devastação, eles viram que, se os direitos humanos não são protegidos, a paz não passa de uma promessa vazia.
Com demasiada frequência, porém, essas palavras são ignoradas. Em alguns países, a ausência de defesa dos direitos humanos é desculpada com a sugestão falsa de que esses são princípios ocidentais estranhos às culturas locais ou aos estágios de desenvolvimento de uma nação. E, dentro da América, existe há muito tempo uma tensão entre os que se descrevem como realistas ou idealistas --tensão essa que sugere uma opção nítida entre a busca estreita por seus interesses próprios ou uma campanha interminável para impor nossos valores.
Rejeito essa opção. Acredito que a paz é instável onde é negado aos cidadãos o direito de expressarem-se livremente ou exercerem a religião que quiserem, escolherem seus próprios líderes ou se reunirem sem medo. As queixas abafadas e acumuladas formam feridas abertas, e a repressão de identidades tribais e religiosas pode levar à violência. Sabemos que o oposto também é verdade. Apenas quando a Europa ficou livre é que ela finalmente encontrou a paz. A América nunca travou uma guerra contra uma democracia, e nossos aliados mais estreitos são governos que protegem os direitos de seus cidadãos. Não importa a frieza com que sejam definidos, nem os interesses da América nem os do mundo são favorecidos pela negação das aspirações humanas.
Assim, ao mesmo tempo em que respeitamos a cultura e as tradições únicas de países distintos, a América sempre será uma voz das aspirações que são universais. Seremos testemunhas da dignidade silenciosa de reformistas como [a birmanesa] Aung San Suu Kyi; da bravura dos zimbabuanos que foram às urnas para votar, enfrentando espancamentos; das centenas de milhares de pessoas que marcharam silenciosamente nas ruas do Irã. É revelador o fato de que os líderes desses governos temem as aspirações de seus próprios povos mais que o poderio de qualquer outro país. E é responsabilidade de todas as pessoas e nações livres deixar claro para esses movimentos que a esperança e a história estão do lado deles.
Permitam que eu também diga o seguinte: que a promoção dos direitos humanos não pode se limitar a exortações. Em alguns momentos, estas precisam ser somadas à diplomacia cuidadosa. Sei que falta ao diálogo com regimes repressivos a pureza satisfatória da indignação. Mas sei também que sanções sem alcance --e condenação sem discussão-- podem facilitar a continuidade de um status quo paralisante. Nenhum regime repressivo pode avançar por um caminho novo se não tiver a opção de uma porta aberta.
À luz dos horrores da Revolução Cultural, o encontro de Nixon com Mao pareceu indesculpável --mas é certo que ajudou a conduzir a China para um caminho através do qual milhões de seus cidadãos foram tirados da pobreza e postos em contato com sociedades abertas. O diálogo do papa João Paulo [2°] com a Polônia criou espaço não apenas para a Igreja Católica, mas para líderes trabalhistas como Lech Walesa. Os esforços de Ronald Reagan com relação ao controle de armas e a adesão à perestroika não apenas melhoraram as relações com a União Soviética como fortaleceram dissidentes em toda a Europa do leste. Não existem fórmulas simples aqui. Mas precisamos nos esforçar ao máximo para equilibrar isolamento e diálogo, pressões e incentivos, de modo que os direitos e a dignidade humanos sejam promovidos ao longo do tempo.
Em terceiro lugar, uma paz justa inclui não apenas direitos civis e políticos --ela precisa abranger a segurança e as oportunidades econômicas. Pois a verdadeira paz não é apenas a liberdade do medo, mas a liberdade da pobreza. É sem dúvida verdade que o desenvolvimento raramente deita raízes sem segurança; também é verdade que a segurança não existe onde seres humanos não têm acesso a alimento suficiente, a água potável ou aos medicamentos de que precisam para sobreviver. Ela não existe onde crianças não podem aspirar a uma educação decente ou a um emprego capaz de sustentar uma família. A ausência de esperança pode fazer uma sociedade apodrecer desde seu interior.
É por isso que ajudar agricultores a alimentar seu próprio povo --ou ajudar nações a educar seus filhos e cuidar de seus doentes-- não é mera caridade. É também por isso que o mundo precisa se unir para fazer frente às mudanças climáticas. Há pouca dúvida científica de que, se não fizermos nada, enfrentaremos mais secas, fomes e deslocamentos em massa que vão alimentar mais conflitos durante décadas. Por essa razão, não são apenas cientistas e ativistas que pedem ação pronta e decisiva --são os líderes militares de meu país e outros, que compreendem que nossa segurança comum está em jogo.
Acordos entre países. Instituições fortes. Apoio aos direitos humanos. Investimentos em desenvolvimento. Todos esses são ingredientes vitais para promover a evolução da qual falou o presidente Kennedy. No entanto, não acreditamos que tenhamos a disposição ou o poder concreto para completar esse trabalho sem algo mais --e esse algo mais é a expansão contínua de nossa imaginação moral, a insistência em que existe algo irredutível que todos nós compartilhamos.
À medida que o mundo se torna menor, poderíamos imaginar que seria mais fácil os seres humanos reconhecerem quão semelhantes somos, compreender que todos desejamos basicamente as mesmas coisas, que todos esperamos a chance de viver nossas vidas com alguma medida de felicidade e realização para nós mesmos e nossas famílias.
No entanto, em vista do ritmo estonteante da globalização e do nivelamento cultural da modernidade, não deve constituir surpresa que as pessoas temem a perda daquilo que valorizam em suas identidades particulares --sua raça, sua tribo e, possivelmente o elemento mais forte, sua religião. Em alguns lugares, esse medo vem levando a conflitos. Em alguns momentos a sensação que se tem é que estamos retrocedendo. Vemos isso no Oriente Médio, onde o conflito entre árabes e judeus parece estar endurecendo. Vemos isso em países dilacerados por divisões tribais.
Mais perigosamente, vemos isso na maneira em que a religião é usada para justificar o massacre de inocentes por aqueles que distorceram e profanaram a grande religião do islã e que atacaram meu país, partindo do Afeganistão. Esses extremistas não são os primeiros a matar em nome de Deus; as crueldades das Cruzadas foram amplamente registradas. Mas eles nos lembram que nenhuma Guerra Santa pode jamais ser uma guerra justa. Pois, se você crê realmente que está realizando a vontade divina, não há necessidade de contenção --não há necessidade de poupar a mãe gestante, ou o médico, nem mesmo uma pessoa de sua própria fé. Tal visão distorcida da religião não apenas é incompatível com o conceito da paz, mas com a finalidade da fé --pois a grande regra que está no cerne de todas as grandes religiões é que devemos fazer com os outros assim como desejamos que eles façam conosco.
Aderir a essa lei do amor sempre foi o conflito fundamental da natureza humana. Somos falíveis. Cometemos erros. Caímos vítimas das tentações da soberba, do poder e, às vezes, do mal. Mesmo os mais bem intencionados entre nós às vezes deixamos de corrigir os erros que vemos à nossa frente.
Mas não precisamos pensar que a natureza humana é perfeita para que continuemos a acreditar que a condição humana pode ser aperfeiçoada. Não precisamos viver em um mundo idealizado para continuar a lutar pelos ideais que farão dele um lugar melhor. A não violência praticada por homens como Gandhi e King pode não ter sido possível ou praticável sob todas as circunstâncias, mas o amor que eles pregaram --a fé deles no progresso humano-- precisa sempre ser o norte que nos guia em nossa jornada.
Pois, se perdermos essa fé -- se a desprezarmos, tachando-a de tola ou ingênua, ou se a separarmos das decisões que tomamos sobre questões de guerra e de paz--, perderemos o que existe de melhor na humanidade. Perderemos nosso senso de potenciais. Perderemos nosso norte moral.
Como fizeram gerações anteriores à nossa, precisamos rejeitar esse futuro. Como disse o Dr. King nesta mesma ocasião, tantos anos atrás: "Recuso-me a aceitar a desesperança como resposta final às ambiguidades da história. Recuso-me a aceitar a ideia de que o 'ser' da natureza atual do homem o torna moralmente incapaz de buscar o eterno 'deve ser' com o qual ele se defronta para sempre."
Busquemos, então, o mundo que deveria ser --aquela faísca do divino que ainda se agita dentro de alma de cada um de nós. Em algum lugar hoje, no aqui e agora, um soldado vê que está em inferioridade de armas diante do adversário, mas se mantém firme para manter a paz. Em algum lugar hoje, neste mundo, uma jovem manifestante aguarda a brutalidade de seu governo, mas tem a coragem de continuar sua marcha. Em algum lugar hoje uma mãe enfrenta miséria punitiva, mas ainda acha tempo para ensinar seu filho que acredita que um mundo cruel ainda reserva um lugar para seus sonhos.
Vivamos como nos mostra o exemplo deles. Podemos reconhecer que a opressão sempre conviverá conosco e, mesmo assim, lutar pela justiça. Podemos admitir a incorrigibilidade da pobreza, e ainda assim lutar por dignidade. Podemos compreender que haverá guerra, e ainda assim lutar pela paz. Podemos fazê-lo --pois é essa a história do progresso humano; é essa a esperança do mundo inteiro; e, neste momento de desafios, é esse que deve ser nosso trabalho aqui na Terra.
Tradução de Clara Allain
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