Brasil põe em risco obras futuras na Bolívia, diz ex-presidente
A crise provocada pela oposição de indígenas amazônicos a uma estrada financiada pelo Brasil na Bolívia põe em risco projetos bilaterais estratégicos e sensíveis do ponto de vista ambiental, como o que prevê a construção da hidrelétrica binacional Cachoeira Esperança, no rio Madeira.
A opinião é do escritor, jornalista e ex-presidente boliviano, Carlos Mesa, 58, quem afirma que o governo brasileiro foi imprudente ao fechar um acordo de financiamento de US$ 332 milhões do BNDES para a rodovia sem a prévia consulta das comunidades do parque Tipnis.
Depois de mais dois meses de protestos, o governo cedeu na sexta-feira passada (21) e fez aprovar nesta segunda na Assembleia lei que proíbe que estradas passem por parques naturais. A disputa, porém, é apenas o primeiro round, diz Mesa. "Há uma lista de pontos a negociar."
Ele defende que o Brasil trate o tema com "sensibilidade" porque diz que o sentimento antibrasileiro pode crescer significativamente no país "no curto prazo" e gerar uma corrente contrária justamente quando o Brasil pretende tocar obras sensíveis ambientalmente, como hidrelétricas.
"Há dois meses se produziu pela primeira vez na história da Bolívia uma manifestação anti-imperialista que não se dirigia à porta da embaixada americana, mas da brasileira, por causa do Tipnis."
Duro crítico do atual presidente, Evo Morales, Mesa, que renunciou à Presidência em 2005 em meio a protestos, diz que não planeja, por enquanto, voltar à política.
Leia entrevista concedida à Folha em Lima, na semana passada, e completada por telefone.
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Folha - É o pior momento para Morales desde 2005? Por quê? E a arrastada crise com as elites do leste do país em 2008 e 2009?
Carlos Mesa - É o pior momento. Porque quando em 2008 se produziu a confrontação entre a oposição do oriente e o governo, a oposição regional --não apenas política-- apostou na desestabilização do governo. E neste momento o governo tinha uma legitimidade inquestionável. Fazer uma batalha não democrática frente a um governo com tal legitimidade foi um grande erro das elites do oriente, sobretudo em Santa Cruz. Essas elites foram derrotadas pelo governo, num momento muito difícil. Mas a natureza da dificuldade agora é diferente. Hoje em dia, ele sofreu uma derrota democrática, que são as em que eu creio. Considerando as diferenças, e democraticamente falando, esse é o pior momento de Morales. Ele cometeu três erros muito graves no último ano: primeiro, o gasolinaço [aumento da gasolina em janeiro], tratar de impor a estrada no Tipnis e supor que a eleição do Judiciário [no dia 16] era viável, quando ninguém no mundo há feito a eleição de todo o Judiciário, ainda mais numa situação de confrontação que o próprio governo havia fomentado.
Mas a eleição em si era complicada. Todo voto nulo pode ser considerado um "não" ao governo? Ou um "sim" à oposição?
Os votos nulos são uma negativa a seguir aceitando um governo autoritário, que trata de impor um discurso único e pensa que só há uma maneira de conduzir o país, sem abertura, sem escutar a ninguém. A população disse: assim não queremos ser governados. Daí a considerar esse resultado um respaldo à oposição é uma interpretação muito otimista por parte deles. Apesar dos problemas técnicos, eu apostaria que quase 80% dos votos nulos são conscientes. A porcentagem dos votos brancos também é três vezes maior que a habitual. A soma de nulos e brancos supera 65%. O resultado é um desastre para o governo.
O que opina do projeto da estrada Beni-Cochabamba? O governo fez bem em vetar a passagem pelo parque?
É óbvio que a solidariedade massiva da cidade de La Paz com a marcha e a mobilização no país fizeram o governo abandonar seu posicionamento teimoso. A sensatez diz que o governo deve construir a estrada fora do Tipnis. Por duas razões muito elementares: um é o interesse nacional, a defesa de um parque em uma zona amazônica muito sensível, de fronteira com a produção de coca. A outra é a vida de três importantes comunidades indígenas que se respaldam na Constituição e na Convenção 169 da OIT para pedir a consulta prévia. Se a estrada não for feita, poderíamos argumentar que estamos impedindo a possibilidade de vertebrar o país. Mas, o que se pedindo, é a construção de um trecho, paralelo ao parque, que não o afete. Não vejo razão, por mais complicado tecnicamente que seja, que não valha a pena pagar o custo. A solução é não passar pelo centro do parque.
O vice-presidente Álvaro García Linera diz que é a rodovia é o projeto geoestratégico mais importante para a Bolívia nos últimos 50 anos, que, se não for feita, deixará na pobreza uma parte isolada do país.
Isso é absolutamente falso. A Bolívia tem dois corredores bioceânicos que são estratégicos. O que vai de Corumbá-Puerto Suárez até Santa Cruz e daí até o Chile. Esse é o projeto mais importante, e não foi uma ideia de Morales, mas ele está terminando. O segundo, que é o do norte, que une Guajará-mirim, desce até La Paz e de lá ao Pacífico. No caso do Tipnis, a estrada parte o país em dois, norte-sul. É mais uma estrada de integração interna. Já existe uma estrada já feira no eixo norte-sul que parte de Santa Cruz até Trinidad. Em consequência, pode-se dizer que estrada é importante, mas não nessa dimensão em nível geoestratégico.
David Mercado - 17.out.03/Reuters | ||
Foto de arquivo mostra Carlos Mesa em junho de 2002, então vice-presidente boliviano |
Há três elementos que há de tomar em conta: a base de apoio mais importante e mais fiel de Morales são os cocaleiros. Ele vem da zona do Chapare, que é fronteiriça com o parque. A construção da estrada obviamente ampliaria a fronteira de produção de coca, o que não é desejável para o país. Por outro lado, há a pressão pela habilitação de novas terras agrícolas para camponeses do altiplano, quéchuas e aimarás, que são outra importante base para o governo. Já ocuparam os espaços e terras, sobretudo em Santa Cruz, e por isso querem a estrada. Esses dois são elementos econômicos muito concretos de pressão direta de bases que além do mais são muito fiéis ao presidente.
E qual é o terceiro elemento?
O terceiro elemento é o posicionamento brasileiro: 80% do financiamento da obra vêm do BNDES e a construtora é a OAS, que está substituindo as grandes empresas brasileiras. Por que OAS, e não Odebrecht ou a Queiroz Galvão? Deixo essa pergunta. De todo modo, por que a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Bolívia um par de dias antes de estalar o conflito. Lula viajou com o auspício precisamente da OAS. Isso suscita perguntas.
Pode o Brasil ignorar o tema ambiental e insistir em respaldar o governo boliviano? Sem pedir elementos de análise ambiental e consultas às comunidades? O Brasil tem projetos muito importantes na Bolívia no futuro. Estamos falando principalmente do norte, com as duas represas, principalmente a Cachoeira Esperança no rio Madeira. A minha impressão é que o Brasil deveria atuar com maior sensibilidade, dado que no futuro os temas ambientais relacionados a investimentos de interesse mútuo vão ser muito significativos. É um elemento que está gerando uma corrente de opinião crescente contrária à linha brasileira.
O sentimento anti-Brasil é significativo?
Vou dizer um exemplo ilustrativo. Por acaso, a avenida onde se encontra a embaixada do Brasil também se encontra a embaixada de EUA, uma em frente à outra. Há dois meses se produziu, pela primeira vez na história da Bolívia, uma manifestação anti-imperialista que não ia à porta da embaixada americana, mas da brasileira, por causa do Tipnis. Não é um tema que esteja arraigado na opinião pública, mas o Brasil tem de perceber que hoje em dia seu papel específico é muito importante na Bolívia. Num prazo muito curto se pode gerar uma corrente de opinião contrária ao Brasil. Há setores intelectuais na Bolívia que pensam que o Brasil sempre teve uma atitude imperialista com a Bolívia. Há um histórico: a guerra do Acre, a atuação do Barão do Rio Branco. Há uma história bilateral com antecedentes que provoca suscetibilidades. O Brasil deveria atuar com muita prudência sobretudo porque a relação bilateral tem muitos elementos em direção ao futuro, narcotráfico entre eles, além de gás e geração hidrelétrica. Portanto, não me atreveria a dizer que neste momento há uma grande corrente antibrasileira, mas se as coisas não se fazem inteligentemente isso pode se produzir.
O governo brasileiro e o BNDES sempre frisaram que não haveria obra enquanto não houvesse consulta e licença ambiental...
Era óbvio que a Constituição boliviana estabelecia a consulta prévia às comunidades afetadas. O que o Brasil deveria ter feito era ter tido mais compasso de espera. Gerar, internamente na relação com o governo Morales -- não de maneira pública -- a seguinte proposta: por que não esperamos a consulta? Quer dizer, o Brasil, pela influência que tem e pela boa relação que mantinham os presidentes Lula e Morales, poderia ter atuado como uma espécie de moderador. Entendo completamente que o Brasil poderá responder formalmente que é um tema interno da Bolívia, mas, por favor! Mas a realidade objetiva faz com que o Brasil seja um ator que a Bolívia deve escutar.
Há uma disputa entre desenvolvimentistas e "pachamâmicos", pró-Mãe Terra, no governo, ou os primeiros já ganharam?
O governo não tem um projeto de fundo. O que tem é uma retórica que quando confrontada com a realidade não resiste. A retórica pachamamista, da mãe natureza, de inclusão indígena está sendo ofuscada por fatos brutais. O governo propôs um gasolinaço que aumentava em 80% o preço da gasolina. Nem o governo mais neoliberal da América Latina se atreveria a tal coisa. Morales, de um governo indígena, diz aos indígenas: "Senhores, vou fazer a estrada gostem vocês ou não. Mais: vou fazer sem consulta". E agora diz que vai fazer uma consulta não vinculante. Como ficamos? Um governo que propõe um caminho em direção à nacionalização não há tocado nem sequer num lápis da Petrobras. O que o governo fez foi uma migração de contratos, com um pequeno incremento de impostos. Nós subimos os impostos de 27% a 53% e Morales está em 61%, 62%. Que nacionalização é essa? Em consequência, há uma distancia muito grande entre as palavras e os fatos, que estão revelando um governo bastante mais conservador do que declara ser. A minha crítica mais forte é que é um governo autoritário. Não há espírito democrático nem de debate no governo.
O que os indígenas amazônicos estão mostrando, e não é a primeira vez, é uma presença muito significativa num momento delicado para o governo. A classe média boliviana está apoiando o Tipnis porque se opõe ao projeto autoritário do governo e porque o parque nacional toca no tema ambiental, para além do indígena. Quer dizer: se mesclou um tema político com o presidente, uma solidariedade pelo tema ambiental e solidariedade porque esses são os indígenas minoritários.
Uma provocação: é mais fácil a classe média se identificar com os indígenas lá da Amazônica, no esquema bom selvagem, do que os indígenas de El Alto, não?
Não acredito nisso. Neste momento, e já faz alguns anos, os indígenas aimarás ganharam poder no país. São cidadãos de primeira categoria: estão no governo, criaram uma nova elite, uma nova burguesia. São parte de um movimento econômico muito importante. Portanto, o clichê de que os aimarás são discriminados era bonito há dez anos, mas não hoje.
O segundo ponto: a pergunta não é o que está acontecendo com a classe média. A pergunta é o que fez o governo para gerar essa solidariedade ao detonar a confrontação. Poderiam ter esperado muitas coisas: que o governo se enfrente às elites de Santa Cruz, aos empresários, ao sistema financeiro. Mas que o presidente se enfrente aos indígenas das terras baixas é algo insólito. A solidariedade quem causa é o presidente, não a classe média que quer ver uns indígenas mais que os outros. Nasce porque é inconcebível que um presidente indígena provoque divisão entre indígenas.
Qual é a situação da oposição?
Há uma oposição que se deu conta de que não pode ficar para trás. Essa oposição que representa Juan de Granado, um ex-aliado de Evo Morales, e o [ex-candidato presidencial] Samuel Doria Medina, que é um empresário de centro, já perceberam que não há regresso antes de 2006 ou antes de 2000, quando vivi a crise da débâcle dos partidos. A oposição que apostava neste passado foi a de 2008. Essa foi derrotada, e isso foi bom. A pergunta que essa oposição atual não responde é: o que é melhor que Evo Morales? Qual a nossa proposta de qualidade mais significativa do que a de Morales?
O que quero sublinhar é que os dois líderes da oposição, Granado e Medina, ainda débeis, não representam o passado, que é a mensagem que o governo quer passar.
Os indígenas conseguiram o veto à estrada pelo parque com mobilização na rua. O governo também teve de recuar em janeiro por protestos contra o aumento da gasolina. Morales, um dos principais líderes sindicais e de protestos massivos da história boliviana, está sofrendo do outro lado agora, como governo?
Numa democracia, supor que o poder está nas ruas é muito bonito no momento da insurgência frente a um sistema que já não dá conta da realidade de um país. Mas supor que se pode viver governado pelas ruas não só não tem sentido como é extremamente perigoso para a estabilidade do governo e do país. Todo governo democrático tem de se basear no cumprimento da lei. Se você aprovou uma nova Constituição, o que se espera é que eu, cidadão, aceite as novas regras. Mas na Bolívia, a lei não se acata, a lei se negocia. Com base em que? Nos movimentos sociais, alguns legítimos e alguns ilegítimos. Como o governo permite a legalização de 120 mil automóveis ilegais, que chegaram de Brasil, Argentina e Chile pela pressão de setores de interesses incrustados no governo? É a lei que manda ou é o tamanho do garrote de cada movimento social?
O movimento cocaleiro está obrigando o presidente a impor uma estrada que claramente é contraproducente e que lhe vai gerar problemas políticos. Por que faz isso? Por que os setores que querem rodovia tem mais poder, por enquanto, do que os que são contra. Assim não dá pra governar. A lei diz que há consulta prévia obrigatória, pois a faça. Foi o senhor que estabeleceu essa lei. O problema é que o governo está começando a perder o controle dos movimentos sociais. Estão cada vez mais reféns da pressão dos movimentos mais fortes que seguem sendo seu apoio mais significativo. No ano passado, o governo teve em média aprovação de 58%. Neste ano, a última medição lhe dá 37% de aprovação. Quando se tem uma votação onde os votos de brancos e nulos algo está acontecendo com relação ao respaldo ao sistema e às propostas históricas do governo.
O sr. pretende voltar a se candidatar? Fundar um partido político?
Não tenho muito entusiasmo para entrar em política neste momento. Uma das coisas que a Bolívia precisa é uma mudança gerencial. Não que eu seja velho, mas já fui presidente do meu país. Há uma geração que está entre 35 e 45 anos que deveria construir uma proposta de país. Faltam três anos para a eleição, e no ano que vem entra em jogo outro fator: a possibilidade de um referendo revogatório contra o presidente. Não estou participando em política neste momento, mas expresso minha opinião, escrevo colunas, tenho Twitter e blog. Minha fundação está trabalhando em temas de governabilidade e direitos humanos. Temas, digamos, acadêmicos.
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