EUA agravam conflito na Síria, diz ex-assessor de segurança
Os EUA não têm uma política clara para o conflito na Síria, e contribuirão para uma explosão regional, engolfando o Iraque e o Irã, se mantiverem uma retórica baseada na emoção e em ameaças à Rússia, aliada do regime de Bashar Assad.
A avaliação é de Zbigniew Brzezinski, que foi assessor de Segurança Nacional de Jimmy Carter (1977-1981) e consagrou-se como um dos principais estrategistas da política externa americana no século 20.
Brzezinski, 84, falou à Folha sobre o Oriente Médio e sobre seu novo livro, "Strategic Vision" (Basic Books), no qual sugere um roteiro para que os EUA mantenham-se como superpotência no século 21. Abaixo, a íntegra da entrevista.
Folha - O sr. diz no livro que uma vantagem dos EUA é a capacidade de reagir quando o país vai mal. Na maioria das vezes, isso aconteceu durante guerras. Será possível fazê-lo em época de paz?
Zbigniew Brzezinski - Uma alternativa à guerra é um desafio externo à primazia americana. Muitos americanos exageram ao pensar que a China represente tal desafio. Mas o fato de pensarem assim ajuda a concentrar sua mente nas fraquezas e vulnerabilidades da América e os torna mais inclinados a pensar nos possíveis remédios.
O sr. fala da necessidade de um presidente capaz de falar a verdade aos americanos e arregimentar apoio para reformas, e que Obama teria fracassado nisso até agora.
Não creio que você tenha interpretado minha posição corretamente. Acho que Obama foi muito bem sucedido em articular uma visão para a América e em dizer explicitamente quais os nossos problemas atuais. No entanto ele teve menos sucesso em tirar as conclusões necessárias de seus discursos e em promover e implementar parte das mudanças necessárias.
Num segundo mandato ele estaria forte o suficiente para isso?
Claro, porque estará menos inclinado a fazer cálculos oportunistas e politicamente orientados.
Karen Bleier/France Presse |
Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de Segurança Nacional para o presidente dos EUA Jimmy Carter (1977-1981) |
O sr. diz que é preciso redefinir o "sonho americano", de tal forma que a gratificação venha menos do consumo e mais da vida cultural e intelectual. Como vê o movimento Occupy?
Entendo as emoções [do Occupy], mas ele não é eficaz. Muito mais importante é tornar o público americano ciente de que as crescentes disparidades de renda, que começam a minar a classe média entre os muito pobres e os ricos, é algo que a América deve enfrentar e controlar. O sistema financeiro americano, infelizmente, tem sido, em alguns aspectos, muito influenciado pela especulação ilimitada e movido pela ambição sem limites.
Os EUA estão saindo do Iraque e do Afeganistão e substituindo a ação militar por operações secretas e o uso de aviões não tripulados para matar supostos terroristas. É uma política inteligente ou pode causar mais ressentimento?
Tenho certeza que causa algum ressentimento, mas o fato de haver uma ameaça da Al Qaeda e mesmo do Taleban indica que essa rejeição já existe. A função desses ataques não é intensificar o conflito, ou mesmo vencê-lo, mas tornar possível uma retirada ordenada. É uma arma tática e não estratégica.
Argumenta-se que essa política concentra poder no Executivo, que escolhe quem será alvo. Não é um risco?
Qual é a alternativa? Um voto nacional em cada ataque, um voto no Congresso? Falamos de um problema prático, que infelizmente não tem soluções atraentes.
O sr. diz que, na ausência da liderança americana clara, potências regionais tenderão a ver só seus interesses. Isso já ocorre na União Europeia, onde a posição da Alemanha em relação aos parceiros mais fracos é criticada?
Não acho que essa conclusão seja justa. Vemos mais esse tipo de risco no sudeste da Ásia e no Oriente Médio. No que diz respeito à Alemanha, ela assumiu em muitos aspectos o custo da liderança na Europa e tem sido a principal fonte de apoio econômico-financeiro para a região.
Mas agora há pressão para ceder mais para resolver a crise em países como Grécia e Alemanha, por exemplo aceitando a emissão de eurobônus.
É preciso diferenciar entre uma maior flexibilidade financeira diante dos problemas e as expectativas exageradas de países que, em pelo menos um caso, não foram precisos quando forneceram à UE informação sobre suas operações financeiras internas e mais especificamente sua dívida.
O Brasil e a América do Sul não estão incluídos na sua visão de um "Ocidente ampliado". O Brasil tem lugar na estratégia dos EUA para manter liderança global?
Claro, porque é um país muito importante. Mas não está na Eurásia --que, para o bem ou para o mal, é a região mais importante do mundo. Uma resposta geoestratégica para o problema da Eurásia tem que primeiro se concentrar no que acontece lá, para manter a estabilidade.
Mas, de modo geral na cena global, se o Brasil estiver inclinado a ter um papel mais ativo, deve estar disposto a participar não apenas das cerimônias e privilégios da liderança, mas também de alguns dos custos, obrigações e mesmo sacrifícios que uma liderança exige.
Muitos veem atitudes dos EUA na Ásia, como o acordo nuclear com a Índia e a nova base na Austrália, como parte do movimento de cercar a China. Os EUA já optaram por essa estratégica?
Não acho que tenham decidido. Infelizmente algumas dessas medidas, das quais discordo, foram interpretadas publicamente como uma nova estratégia americana. E nem todas estão na mesma categoria. A instalação de alguns soldados na Austrália não tem realmente nenhum significado estratégico maior. Já o acordo com a Índia foi um erro.
EUA e China conseguirão chegar a uma acomodação em questões como as atuais atividades militares americanas na zona econômica e no mar territorial chineses?
Eu falo disso explicitamente no livro, e advirto para a necessidade de os EUA fazerem ajustes significativos a esse respeito. Ao mesmo tempo, os líderes americanos e chineses reconhecem, e já conversei com os dois lados sobre isso, que é do interesse vital dos dois países evitar conflitos, evitar a demonização mútua e estar cientes de que ambos sofrerão se a relação se deteriorar, assim como se beneficiarão se uma parceria genuína for mantida, apesar de diferenças de opinião inevitáveis.
Como as transições no Oriente Médio, em particular no Egito, afetarão o conflito palestino-israelense?
Vão complicá-lo, e ao mesmo tempo tornarão ainda mais urgente que haja uma solução para essa questão. Mas essa solução não virá se esperarmos que israelenses e palestinos cheguem a um acordo. Os israelenses são muito fortes para fazer concessões, e os palestinos muito fracos. É preciso um mediador enérgico, e ultimamente os EUA fracassaram em sê-lo.
O sr. diz que os EUA poderiam viver com um Irã nuclear, adotando uma política de contenção. Obama descartou essa opção. Está otimista sobre a negociação atual?
Não estou otimista demais. Mas ainda espero que o bom senso prevaleça porque um conflito com o Irã, ou a imposição ao Irã de exigências excessivas, criarão uma situação que seria danosa para a própria região, e possivelmente muito prejudicial à economia global.
O sr. acha que os EUA têm uma política clara em relação ao conflito na Síria?
Não. Ouço muita emoção e slogans. Mas não sei quais são os verdadeiros planos da Casa Branca nem como serão implementados a menos que consigamos a cooperação internacional.
Se agirmos só na base da emoção e ameaças vagas de que os russos têm que se comportar como bons garotos, provocaremos uma explosão regional na qual os assuntos internos da Síria serão ligados aos conflitos entre os sauditas e os xiitas, o Iraque será desestabilizado, e poderemos ter o rompimento das negociações com o Irã. Teremos um enorme problema internacional, com consequências políticas e econômicas seríssimas.
O sr. é contra uma intervenção militar, mesmo com a continuação da violência lá?
A violência é terrível. Também aconteceu numa escala muito maior em países nos quais não interviemos, como Ruanda e Sri Lanka. A verdade é que, ao menos que haja cooperação internacional para uma proposta que o governo Assad possa suportar, e que contenha um esforço supervisionado para que se alcance algum consenso interno, esse conflito não vai acabar.
O "New York Times" o definiu como uma pessoa de esquerda. Concorda?
Não. Considero que sou inteligentemente centrista.
A essência do seu livro é que os EUA devem ser o promotor de união maior no Ocidente e um conciliador no Oriente. Que apoio essa visão tem nos meios políticos americanos?
Só o tempo dirá, mas não durante a campanha eleitoral --que é dominada por slogans.
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