Quênia se prepara para eleições, e antigas disputas reemergem
Na sala ao lado da escadaria, Shukrani Malingi, agricultor da tribo pokomo, se contorcia deitado em um catre metálico, devido a queimaduras que destruíram a pele de suas costas. A uma distância segura dele, no corredor, Rahema Hageyo, uma menina da tribo orma, olhava pela janela, impassível, e em seu pescoço fino era visível uma longa cicatriz. Ela foi quase decapitada por um golpe de facão --e só tem nove meses de idade.
Desde que irromperam os confrontos étnicos entre os pokomo e os orma, meses atrás em uma parte pantanosa e desolada do Quênia, o Hospital Tawfiq adotou uma norma rigorosa para as vítimas que recebe: os pokomo ficam de um lado, e os orma do outro.
A antiga rivalidade entre as duas tribos, que elas alegam ter sido redespertada por uma disputa eleitoral pelo governo do condado, se tornou explosiva a ponto de forçar uma separação entre os integrantes das tribos mesmo enquanto recebem tratamento hospitalar. Quando os pacientes deixam seus quartos para ir ao banheiro, caminham cautelosamente em seus trajes hospitalares manchados de sangue, em alguns casos lentamente empurrando porta-sondas, e se cruzam silenciosamente nos corredores.
"Essa guerra tem três motivos", diz Elisha Bwora, anciã da tribo pokomo: "Tribo, terra e política".
A intervalos de cerca de cinco anos, este país estável e em geral pacífico, um oásis de desenvolvimento em uma região muito pobre e turbulenta, sofre uma transformação assustadora como resultado da qual antigas disputas são redespertadas, milícias étnicas se mobilizam e vizinhos começam a matar vizinhos. A causa são as eleições, e um novo e importante pleito --um dos mais decisivos na história do país, e certamente o mais complicado-- ocorre amanhã.
Nesta segunda-feira, milhões de quenianos formarão filas para escolher seus líderes, pela primeira vez desde a desastrosa eleição de 2007, a qual resultou em confrontos que causaram a morte de mais de mil pessoas. O país passou anos debatendo angustiadamente o acontecido, e tomou algumas medidas para resolver seus problemas, entre as quais se destaca a aprovação de uma nova constituição. Mas fazer justiça está se provando difícil, a política continua a ter coloração étnica, e líderes acusados de crimes contra a humanidade têm chance real de vitória nas urnas.
Os quenianos tendem a votar em blocos étnicos, e em períodos eleitorais os políticos do país têm um histórico de fomentar as divisões e ocasionalmente até de promover matanças, de acordo com documentos judiciais. Desta vez, os discursos vitriólicos parecem mais contidos, mas em certas áreas onde ocorreu violência depois da última eleição, a mensagem implícita de oposição entre grupos rivais continua a ser muito clara.
Agora, o Quênia está se fazendo uma pergunta simples mas urgente: será que a História vai se repetir?
"As eleições despertam o que há de pior em nós", afirmava uma coluna do jornal "Daily Nation", o maior do Quênia, há duas semanas. "Todo o preconceito tribal, todas as disputas e picuinhas do passado, todas as ofensas reais e imaginadas, todos os desafetos e ódios, tudo isso caminha pelas ruas como hordas de zumbis sedentos em busca de inocentes que possam devorar".
Com a aproximação da eleição, os alarmes não param de soar. Sete civis foram emboscados e mortos no nordeste do Quênia, no último dia 14, em um ataque visto por muitos como causado por motivos políticos. No dia anterior, o presidente do supremo tribunal queniano afirmou que um notório grupo criminoso o havia ameaçado de "sofrer consequências trágicas" caso decidisse contra um dos principais candidatos à presidência em um processo que está julgando. Pecuaristas no vale do Rift afirmam que o roubo de gado está se agravando, e acusam os políticos de instigar o crime porque isso agrava a hostilidade entre as diferentes comunidades do país.
Porque o Quênia é referência tão importante para o que acontece na África, o que transcorrer por aqui pode determinar se os anos de acordos tênues de divisão de poder e de reconciliação política --modelo também colocado em uso no Zimbábue, depois de eleições ferozmente contestadas-- tiveram o resultado esperado.
"O resto da África deseja saber se é possível aprender com passadas eleições e garantir que a violência não volte a irromper", disse Phil Clark, professor na Escola de Estudos Orientais e Africanos, em Londres. "Com cinco anos de alerta, será possível corrigir as causas de conflito e transferir o poder pacificamente?"
Pressionado por intelectuais quenianos e pelos aliados ocidentais do país, o Quênia reformou seu Judiciário, sua comissão eleitoral e a natureza do poder no país. Dezenas de novos postos, tais como governos de condados e assentos no Senado, foram criados para garantir um fluxo mais equitativo de recursos para as bases, em uma tentativa de atenuar as desigualdades do sistema anterior, que beneficiava apenas os vencedores e oferecia oportunidades e recompensas desproporcionais a alguns grupos étnicos, marginalizando os demais.
Mas em lugares como o delta do rio Tana, onde os confrontos entre os pokomo e os orma já causaram mais de 200 mortes, a ênfase renovada em governo local se traduziu na verdade em mais espólios pelos quais lutar. E há cerca de 50 governos de condado em disputa no Quênia, e diversas das eleições locais parecem muito acirradas.
"Os orma estão tentando nos tirar daqui para que não possamos votar", disse Bwora, a anciã da tribo pokomo. "Eles incendiaram nossas aldeias, queimaram até nossas certidões de nascimento. Como podemos votar, dessa forma?"
Os orma acusam os pokomo de fazerem exatamente a mesma coisa, o que inclui a queima de certidões de nascimento.
No cenário nacional, dois dos políticos mais contenciosos do Quênia --Uhuru Kenyatta e William Ruto-- formaram uma chapa para disputar a presidência e a vice-presidência. Os dois foram acusados pelo Tribunal Criminal Internacional de crimes contra a humanidade, relacionados à violência acontecida nas últimas eleições. Kenyatta, primeiro-ministro assistente e filho do primeiro presidente do país, é acusado de bancar esquadrões da morte que percorreram regiões do país de casa em casa, no começo de 2008, assassinando os partidários da oposição e suas famílias, incluindo crianças pequenas.
É bem possível que ele venha a ser eleito para a presidência do Quênia e se veja na condição de primeiro chefe de Estado forçado a viajar regularmente a Haia para seu julgamento, o que complicaria o relacionamento quase sempre caloroso entre o Quênia e o Ocidente.
Uma percepção vem ganhando força entre muitos membros dos grupos étnicos de Kenyatta, o kikuyu, e de Ruto, o kalenjin - a de que precisam vencer essa eleição a fim de proteger seus líderes contra a deportação para julgamento na Europa, e isso agrava ainda mais as tensões.
A maioria dos analistas quenianos sente que a eleição será turbulenta, ainda que alguns argumentem que não deve ser tão grave quando a passada.
"As coisas são diferentes", diz Maina Kiai, renomado defensor dos direitos humanos no Quênia. Ele aponta, por exemplo, que os kikuyu e os kalenjin combateram uns contra os outros no vale do Rift em 2007 e 2008, mas que hoje os dois grupos estão do mesmo lado porque seus líderes formaram uma aliança política.
"Pode haver novas arenas de violência", disse Kiai. "Mas não creio que as dimensões da violência serão as mesmas".
Também há uma clara consciência de que há muito a perder. A economia queniana, que praticamente se paralisou depois da violência que acompanhou o pleito passado, agora está mostrando forte recuperação, com grande número de novas estradas, escolas, hospitais, shopping centers, bares de vinho, lojas de iogurte congelado e até mesmo amostras grátis nos supermercados; a forte classe média do Quênia é uma das mais numerosas da África.
Muitos dos países da região dependem do Quênia, como ficou demonstrado pelo caos econômico causado em outras nações durante a eleição passada, quando as estradas do país foram bloqueadas por manifestantes, o que causou aumentos nos preços dos combustíveis até mesmo na vizinha República Democrática do Congo.
Outra válvula de segurança pode ser o Judiciário, hoje visto como muito mais independente e como uma das maiores realizações do país depois da eleição passada. O novo sistema judiciário do Quênia tem em seu comando um antigo prisioneiro político e jurista respeitado, Willy Mutunga, o juiz presidente do supremo tribunal que revelou ter sido ameaçado esta semana.
A esperança é de que quaisquer disputas eleitorais que surjam entre Kenyatta e o outro candidato visto como possível vencedor, Raila Odinga, o primeiro-ministro queniano, que diz que venceu a eleição presidencial passada mas não foi empossado devido a fraude eleitoral da parte dos adversários, venham a ser resolvidas por Mutunga antes que as pessoas saiam às ruas para fazê-lo.
Mas o delta do rio Tana continua a ser um alerta vermelho claro, e existem suspeitas de que há figuras políticas deliberadamente fomentando disputas antigas, no caso referentes à posse da terra.
Um importante político pokomo, antigo ministro assistente no governo nacional, foi detido recentemente e acusado de incitação à violência, ainda que o caso tenha sido abandonado. A alegação ecoa o que foi revelado nos processos do Tribunal Criminal Internacional, segundo os quais os distúrbios das bases em 2007 e 2008 foram provocados por líderes políticos que incitaram seus seguidores a matar em busca de vantagem política.
Ao longo do rio Tana, repleto de crocodilos, jovens pokomo e orma agora patrulham as margens armados com espadas enferrujadas e azagaias. O resultado é uma imagem ensolarada porém sombria de aldeias paralelas mas segregadas etnicamente, vítimas da mesma pobreza, miséria e medo.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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