Diário de Bagdá, 2003 - No palácio de Saddam
Leia texto publicado em 14 de abril de 2003 como parte do "Diário de Bagdá", relatos do jornalista Sérgio Dávila e do repórter fotográfico Juca Varella, enviados da Folha a Bagdá por ocasião da invasão americana ao país.
"Os dois marines e a cerca de arame farpado que bloqueiam a entrada do Complexo Presidencial de Bagdá ficaram para trás, no começo da longa alameda. Se o regime de Saddam Hussein tivesse apenas um coração, esta seria sua sede, esparramada por toda a margem esquerda da curva que o rio Tigre faz bem no meio da cidade. A área ocupada se estende da ponte da República à 14 de Julho e conta com pelo menos três palácios usados pelo ex-ditador.
A imagem de sua linha do horizonte em chamas ganhou fama mundial na noite de 21 de março último, quando virou alvo do bombardeio mais violento despejado pela coalizão anglo-americana nesta guerra até agora. Desde então, centenas e centenas de bombas e mísseis encontraram seus alvos aqui. Não à toa, o serviço secreto dos EUA chamava a região de "Casa Branca iraquiana", comparando-o com a sede do Executivo norte-americano.
Na manhã de ontem, a Folha teve acesso a cinco prédios do complexo, dois bastante destruídos, dois parcialmente inteiros e um que resistiu intocado. Entre todos, o que mais impressiona é o que nos afirmaram chamar Velho Palácio, uma referência popular bagdali que acabou caindo em desuso devido à sanha com que o ex-presidente do Iraque mandava construir residências para si próprio -são mais de 40 palácios espalhados pelo país, a maioria localizada dentro de Bagdá.
Não está completamente no chão. Os sinais do bombardeio são evidentes logo na entrada e no longo corredor de mármore que liga todas as salas, mas ironicamente os aposentos presidenciais foram os menos atingidos. No quarto, chama a atenção a presença de duas camas de casal. De fato, o ex-presidente tem duas mulheres, das até quatro permitidas pela lei islâmica, mas a mesma lei proíbe que vivam na mesma casa.
Assim, o mais provável é que quando usasse as instalações Saddam dormisse sozinho em uma das camas e apenas uma de suas mulheres dormisse em outra, suposição reforçada pela presença de uma penteadeira ao lado de somente uma delas. No banheiro, de mármore preto e torneiras douradas, um armário ainda guarda remédios com rótulos em árabe e a pia de porcelana traz um prosaico pente. No escritório, verde e dourado, a mesa presidencial ainda tem as chaves das gavetas, vazias.
A presença dos objetos cotidianos e a ausência de documentos importantes têm uma mesma explicação: o complexo foi um dos primeiros a ser ocupados pelos marines depois da tomada do aeroporto internacional, o marco zero da queda de Bagdá. Na manhã do dia 7 de abril, tanques já se espalhavam pelas ruas e batedores revistavam cada cômodo de cada prédio em busca de informações relevantes. Com isso, o local é um dos únicos que não foi saqueado pela população.
Um pouco antes na alameda principal, ficava o Conselho dos Ministros, prédio de dez andares em forma de pirâmide que foi bombardeado dezenas de vezes desde o dia 20. No fim da rampa, aparece caída uma das folhas da porta de entrada com o brasão da República, a fechadura ainda trancada. Guardava o salão principal, com um chafariz no meio, uma cúpula no teto e chão de mármore rosa, que ainda está morno e vai se dissolvendo como farelo enquanto o repórter e o fotógrafo andam pelo interior.
À frente, do outro lado da rua, olhando para o afresco com um Saddam agora desfigurado, ergue-se o clube do Secretariado Presidencial, onde dormia a temida guarda particular do ex-ditador e que hoje é ocupada por uma das divisões dos marines. No salão de jogos, camas de campanha cercam uma mesa de sinuca. Numa delas, o soldado Gonzalez joga videogame, sob o olhar de reprovação do sargento Patrick. Eles não têm a mesma sorte dos oficiais, que ocuparam a sala de TV, com ar-condicionado.
Sorte diferente tiveram também os soldados iraquianos que ocupavam uma das trincheiras cavadas no gramado que recebe quem chega à sede do Ministério do Planejamento, uns 200 metros ao sul do Secretariado. Um saco de pão, botas largadas e maços de cigarro pela metade denunciam que eles saíram às pressas, seja no primeiro bombardeio, seja na chegada das tropas invasoras. Tão às pressas que deixaram para trás a maior parte das armas.
Há duas caixas verde-militar com 20 granadas nunca utilizadas cada uma, fabricadas pela então União Soviética em 31 de março de 1983, como mostra a etiqueta colada dentro. Ao lado, outra caixa um pouco maior traz dez morteiros de mão. A Folha contou pelo menos seis pentes completos do fuzil russo Kalashnikov e quatro máscaras antigás, além de um saco de balas. O esconderijo deve ter passado despercebido pelos americanos, que dizem ter destruído ou confiscado todas as armas encontradas até agora.
E no entanto fica a poucos metros de uma das entradas principais do complexo, que ontem de manhã recebia seis tanques norte-americanos, um deles com um soldado de braços erguidos, comemorando a vitória talvez cedo demais.
BRINCADEIRA DE MARINE REVOLTA BAGDALIS
Os ânimos entre invasores (autoproclamados libertadores) e invadidos continuam exaltados.
O soldado Brian, que já visitou Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, queria apenas fazer uma brincadeira. No painel frontal externo do veículo que conduz, um trator anfíbio do Exército norte-americano, pregou uma placa que pertencia a um carro iraquiano e que achou jogada na rua, uma das tais "lembranças" que o presidente George W. Bush pediu que os marines devolvessem.
Nem cinco minutos se passaram, e bagdalis foram parando em frente ao veículo e comentando. Aos poucos, um grupo de pelo menos dez pessoas gritava slogans anti-Estados Unidos e exigia que a chapa fosse retirada. O soldado desceu, arrancou a placa e a devolveu aos que reclamavam sem nem tentar argumentar.
Por essa e outras, ninguém anda com bandeiras norte-americanas ou britânicas à vista. Ontem, o sargento Pitonias, marine, desfilava com uma flor branca na lapela. "Pela paz", disse.
O fato é que, até agora, apenas uma minoria entre os habitantes de Bagdá se manifestou. Foi uma minoria que saiu às ruas para derrubar as estátuas de Saddam Hussein e comemorar a queda do regime, é uma minoria que continua saqueando os prédios públicos (e, agora, muitos privados), assim como muito poucos protestam contra a presença dos norte-americanos na cidade.
A maioria dos bagdalis continua esperando silenciosamente.
Por falar em Saddam Hussein, muito tempo vai passar até que a população consiga derrubar todas as estátuas, queimar todos os quadros e arrancar todas as faixas com o rosto do ex-ditador iraquiano que se espalha pela cidade. São milhares e milhares, em literalmente todos os lugares públicos, muitos ainda intocados.
Ontem, pela primeira vez desde quinta-feira, o primeiro comboio da imprensa vindo de Amã (Jordânia) foi proibido de entrar em Bagdá pelos marines. Por enquanto, diz o Exército norte-americano, a cidade (leia-se os dois hotéis que têm geradores próprios) não conta com infraestrutura para receber mais jornalistas estrangeiros.
Na terça, horas antes de a cidade ser tomada pelos marines e de toda a equipe do Ministério da Informação iraquiana desaparecer do mapa, o diretor de imprensa, Udai al-Tai, reuniu todas as emissoras de TV estrangeiras presentes em Bagdá e as ameaçou de cortar a energia caso não pagassem o que deviam pela "licença de trabalho" do governo.
Como já explicado neste diário, o regime de Saddam Hussein cobrava entre US$ 250 e US$ 750 por dia por jornalista estrangeiro para permitir que este trabalhasse em solo iraquiano. Havia uma taxa de manutenção, uma de utilização de telefone por satélite, outra de utilização de câmera fotográfica ou de TV etc. etc.
Pois bem. Uma hora depois da reunião de terça-feira, Udai al-Tai subiu para seu quarto do hotel Palestine pela última vez carregando uma maleta com US$ 200 mil em dinheiro vivo. Somente notas de dólar.
Os que não pagaram estão comemorando até hoje.
Uma das únicas sedes de ministérios iraquianos não atingida por bombas e mísseis em Bagdá? A do Ministério do Petróleo.
Uma das únicas sedes que não foram saqueadas e incendiadas pela população, pois conta com um grupo de marines protegendo-a desde quarta-feira? A do Ministério do Petróleo."
Sérgio Dávila é enviado especial da Folha ao Iraque
Juca Varella, fotógrafo, é enviado especial da Folha ao Iraque
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