Índia se prepara para monitorar 120 milhões de internautas
A Índia lançou um programa amplo de vigilância que dará às suas agências de segurança e até às autoridades tributárias a capacidade de ler e-mails e ouvir chamadas telefônicas sem supervisão direta dos tribunais ou do Legislativo, disseram diversas fontes.
A vigilância expandida sobre a mais populosa democracia do mundo, que o governo diz ajudará a salvaguardar a segurança nacional, alarmou os defensores da privacidade em um momento no qual alegações de bisbilhotice digital fora do país em escala maciça, pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, causaram furor mundial.
"Se a Índia não deseja parecer um regime autoritário, precisa ser transparente sobre quem estará autorizado a recolher dados, que dados serão recolhidos, como os dados serão usados e como o direito à privacidade será protegido", disse Cynthia Wong, pesquisadora sobre Internet na Human Rights Watch, uma organização de defesa dos direitos humanos em Nova York.
O Sistema Central de Monitoração (SCM) foi anunciado em 2011, mas não houve debate público e o governo pouco disse sobre como o sistema funcionará ou como garantirá que não aconteçam abusos.
O governo começou a implementar o sistema discretamente, Estado por Estado, em abril deste ano, de acordo com funcionários. Quando o processo estiver concluído, será possível vigiar os 900 milhões de assinantes de telefonia fixa e móvel e os 120 milhões de internautas do país.
K. S. Dhatwalia, porta-voz do Ministério do Interior indiano, disse que não tinha detalhes sobre o SCM e portanto não tinha como comentar sobre as preocupações quanto à privacidade. Uma porta-voz do Ministério das Telecomunicações, que supervisionará o SCM, não respondeu a perguntas.
Funcionários do governo indiano disseram que tornar públicos os detalhes do processo limitaria sua efetividade como ferramenta de coleta de informações clandestinas.
"A segurança do país é muito importante. Todos os países têm programas de vigilância como esse", disse um importante funcionário do Ministério das Telecomunicações, defendendo a necessidade de um sistema de escuta em larga escala como o SCM.
"Pode-se ver terroristas sendo apanhados, crimes sendo impedidos. Vigilância é necessária. O sistema serve para proteger a vocês e ao país", disse o funcionário, que esteve diretamente envolvido na implementação do projeto. Ele não quis que seu nome fosse mencionado devido à delicadeza do assunto.
SEM FISCALIZAÇÃO INDEPENDENTE
O novo sistema permitirá que o governo ouça e grave conversas telefônicas, leia e-mails e mensagens de texto, monitore posts no Facebook, Twitter e LinkedIn e acompanhe buscas no Google, para alvos específicos, de acordo com entrevistas com dois outros funcionários que participaram da implementação do programa, ativistas dos direitos humanos e especialistas em segurança cibernética.
Em 2012, a Índia enviou 4.750 pedidos de dados sobre usuários ao Google, o maior número de pedidos atrás dos Estados Unidos.
As agências de segurança não precisarão mais de mandados judiciais para vigilância e tampouco dependerão, como acontece agora, de empresas de telefonia ou provedores do Internet para lhes dar acesso aos dados, disseram os funcionários do governo.
Servidores de interceptação de dados do governo estão sendo montados nas instalações de empresas privadas de telecomunicações. Eles permitirão que o governo intercepte comunicações quando desejar, sem informar aos prestadores de serviços, de acordo com funcionários e com documentos públicos.
O principal funcionário permanente do Ministério do Interior federal e seus assistentes em nível estadual terão o poder de aprovar pedidos de vigilância de números específicos de telefone, contas de e-mail e contas de mídia social, disseram os funcionários.
Embora não seja incomum que governos tenham equipamentos instalados em empresas de telecomunicações e provedores de acesso, eles em geral precisam submeter mandados ou estão sujeitos a outras formas de fiscalização independente.
"Contornar os tribunais é algo de realmente perigoso e pode facilmente resultar em abusos", disse Pawan Sinha, professor de direitos humanos na Universidade de Delhi. Na maioria dos países da Europa e dos Estados Unidos, as agências de segurança são obrigadas a buscar aprovação judicial ou a funcionar sob supervisão da Justiça, ele diz.
O importante funcionário do Ministério das Telecomunicações descartou as sugestões de que o sistema indiano pode estar aberto a abusos.
"O Secretário do Interior precisa de informações prévias consideráveis da parte dos serviços de inteligência antes de aprovar qualquer monitoração ou escuta. Não poderá decidir aleatoriamente que vai gravar as conversas de alguém", ele disse.
"Se o governo vier a ler os seus e-mails ou escutar suas conversas telefônicas, isso será feito por um bom motivo. Isso não será uma invasão da privacidade, mas sim proteção a você e ao país", ele disse.
O governo indiano já ordenou detenções por posts críticos nas mídias sociais, ainda que não tenha havido processos contra os detidos.
Em 2010, a revista indiana "Outlook" acusou agentes dos serviços de inteligência de grampear as conversas telefônicas de diversos políticos, entre os quais um ministro. As acusações não foram provadas, mas geraram indignação política.
SEM LEI DE PROTEÇÃO À PRIVACIDADE
"Os muitos abusos quanto a escutas telefônicas deixam claro que essa não é a melhor forma de organizar um sistema de fiscalização e controle", disse Anja Kovacs, pesquisadora no Centro de Internet e Sociedade, em Nova Delhi.
"Quando regras semelhantes são usadas para monitoração e vigilância ainda mais extensas, como parece ser o caso com o SCM, os perigos de abuso e suas implicações para os cidadãos são ainda maiores", ela acrescentou.
Nove agências do governo indiano estarão autorizadas a realizar pedidos de interceptação, entre as quais o Serviço Central de Investigação (CBI), a mais importante agência de polícia indiana; o Serviço de Inteligência (IB), agência de espionagem interna; e o serviço de receita.
A Índia não tem uma lei formal de privacidade e o novo sistema de vigilância será operado sob a Lei da Telegrafia Indiana, promulgada pelos colonizadores britânicos em 1885, que dá liberdade ao governo para monitorar conversas privadas.
"Somos obrigados por lei a dar a todas as agências policiais acesso às nossas redes", disse Rajan Matthews, diretor geral da Associação de Operadoras de Celulares da Índia.
As companhias de telecomunicações Bharti Airtel - subsidiária indiana da Vodafone -, Idea Cellular, Tata Communications e MTNL, esta última estatal, não responderam de imediato a pedidos de comentário.
A Índia tem um longo histórico de grupos separatistas violentos e outros militantes agindo em seu território. Mais de um terço dos 670 distritos do país são afetados por atos violentos desses grupos, de acordo com o South Asia Terrorism Portal.
O governo vem intensificando seus esforços de monitoração das atividades dos grupos militantes desde que uma unidade de militantes baseados no Paquistão atacou Mumbai em 2008, matando 166 pessoas. A monitoração de telefones e da Internet faz parte dessa vigilância.
Milind Deora, ministro assistente indiano para a tecnologia da informação, disse que o novo sistema de coleta de dados na verdade protegeria mais a privacidade dos cidadãos porque as companhias de telecomunicações não estariam mais envolvidas diretamente na vigilância. Apenas funcionários do governo teriam acesso aos dados.
"A companhia de telefonia móvel não terá conhecimento sobre que conversações telefônicas estão sendo interceptadas", disse Deora em uma conversa no fórum social Google Hangout, há algumas semanas.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis