Leia a íntegra do discurso de Obama sobre jovem negro morto
Obama discursou nesta sexta sobre Trayvon Martin, o jovem negro morto a tiros na Flórida pelo vigia noturno voluntário George Zimmerman.
Zimmerman foi inocentado pelo crime em uma corte na Flórida.
Leia a íntegra do discurso:
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Eu quis vir aqui, antes de tudo, para lhes dizer que Jay está preparado para todas as suas perguntas e aguarda ansiosamente a entrevista. A segunda coisa que desejo afirmar é que, ao longo das próximas duas semanas, obviamente haverá uma ampla gama de questões - imigração, economia etc. - e tentaremos organizar uma entrevista coletiva mais completa para responder às suas perguntas.
O motivo para que eu quisesse me apresentar hoje não é para responder perguntas, mas para falar de uma questão que recebeu muita atenção ao longo da última semana - a questão do veredicto sobre Trayvon Martin.
Fiz uma declaração preliminar logo depois do veredicto, no domingo. Mas acompanhando o debate ao longo da semana que passou, cheguei à conclusão de que seria útil que eu me estendesse um pouco quanto ao que penso a respeito.
Primeiro, eu gostaria de reafirmar que, uma vez mais, meus pensamentos e orações, bem como os de Michelle, estão com a família de Trayvon Martin, e ressaltar a incrível dignidade e graça com que eles vêm enfrentando toda a situação. Só posso imaginar aquilo pelo que estão passando, e é admirável a maneira pela qual estão encarando o ocorrido.
A segunda coisa que quero dizer é reiterar o que declarei no domingo, ou seja, que vai haver muita discussão sobre as questões legais do caso - e eu permitirei que os analistas jurídicos e comentaristas televisivos tratem delas. O juiz conduziu o caso de maneira profissional. A promotoria e a defesa apresentaram seus argumentos. Os jurados foram devidamente instruídos de que num caso como esse a questão da dúvida razoável é importante, e pronunciaram seu veredicto. E quando o júri se pronuncia, o caso está concluído. É assim que funciona o nosso sistema.
Mas eu queria falar um pouco sobre o contexto, sobre como as pessoas reagiram a decisão e sobre como as pessoas estão se sentindo.
Quando Trayvon Martin foi morto, minha reação foi a de dizer que elepoderia ser meu filho. Outra maneira de descrever a situação é que ele poderia ter sido eu, 35 anos atrás. E quando você pensa sobre o motivo para que haja tanta dor sobre o ocorrido, ao menos na comunidade afro-americana, creio que seja importante reconhecer que a comunidade afro-americana encara essa questão com base em um conjunto de experiências e em uma História que não há como apagar.
Existem muito poucos homens afro-americanos neste país que não tenham tido a experiência de ser seguidos quando estavam fazendo compras em uma loja de departamentos. Estou entre eles. Há poucos homens afro-americanos que não tiveram a experiência de atravessar uma rua e ouvir as travas sendo acionadas nas portas dos carros. Isso acontecia comigo - ao menos antes de eu me tornar senador. Há poucos afro-americanos que não tenham tido a experiência de entrar em um elevador e ver uma mulher segurando a bolsa nervosamente, mantendo a
respiração suspensa até que surgisse a oportunidade de descer. Isso acontece com frequência.
Não quero exagerar o ponto, mas esses conjuntos de experiências dão forma à maneira pela qual a comunidade afro-americana interpreta o que aconteceu certa noite na Flórida. E é inescapável que as pessoas se deixem influenciar por essas experiências. A comunidade afro-americana também tem o conhecimento de que existe um histórico de disparidades raciais na aplicação de nossas leis criminais - em todas as áreas, da pena de morte às nossas leis sobre as drogas. E isso termina tendo um impacto sobre a maneira pela qual as pessoas interpretam o caso.
Isso não significa dizer que a comunidade afro-americana é ingênua quanto ao fato que número desproporcional de jovens afro-americanos estão envolvidos com o sistema de justiça criminal; que eles contam com representação desproporcional tanto entre os perpetradores quanto entre as vítimas da violência. Isso não significa que procuremos desculpas para os fatos; mas os negros interpretam as razões para eles no contexto histórico. Compreendem que parte da violência que acontece nos bairros negros pobres de todo o país nasce do passado muito violento desta nação, e que a pobreza e a disfunção que vemos em nossas comunidades remontam a uma História muito difícil.
E assim, o fato de que isso seja ocasionalmente desconsiderado reforça a frustração. Bem como o fato de que muitos meninos afro-americanos sejam descritos em termos genéricos, com a desculpas de que, bem, há todas essas estatísticas que provam que os meninos afro-americanos são mais violentos -e que isso seja usado como desculpa para a dor que ver o tratamento dado aos filhos dos afro-americanos causa aos pais.
Acredito que a comunidade afro-americana não seja ingênua e compreenda que, estatisticamente, alguém como Trayvon Martin tinha maior probabilidade de ser morto a tiros por um colega do que por qualquer outra pessoa. Ou seja, as pessoas compreendem os desafios que os meninos afro-americanos precisam enfrentar. Mas se frustram, acredito, se sentem que não há contexto para isso ou que o contexto está sendo negado. E tudo isso contribui para um senso de que, se um adolescente branco estivesse envolvido no mesmo cenário, tanto o resultado quanto as consequências seriam diferentes, de cima abaixo.
Agora, a questão para mim, e acredito que para muita gente, é como respondermos a isso? Como aprendermos as lições que esse caso oferece e caminharmos em uma direção positiva? Creio que seja compreensível que tenha havido manifestações, vigílias e protestos, e que algumas dessas questões tenham de ser expressadas, desde que essa expressão continue a ser não violenta. Se eu vir qualquer violência, lembrarei às pessoas que isso desonra o que aconteceu a Trayvon Martin e à sua família. Mas para além dos protestos e vigílias, a questão é: existe alguma coisa concreta que possamos fazer?
Sei que [o secretário da Justiça] Eric Holder está revisando o acontecido lá, mas creio que seja importante que as pessoas tenham algumas expectativas claras, quanto a isso. Tradicionalmente, essas questões cabem aos governos estaduais e locais, ao código criminal local. E o trabalho policial é realizado tradicionalmente em nível estadual e local, e não em nível federal.
Isso não significa, porém, que como nação não possamos fazer coisas que eu imagino seriam produtivas. Permitam-me mencionar um par de exemplos específicos que estou discutindo com minha equipe; não estamos, portanto, propondo um plano cuidadoso de cinco pontos, mas sim mencionando algumas ideias sobre as quais creio que todos poderíamos concentrar esforços.
A primeira, exatamente porque a ação policial é muitas vezes determinada em nível estadual e local, é que imagino que seria produtivo para o Departamento da Justiça, os governadores e prefeitos trabalharem com a polícia e a promotoria para o treinamento em nível estadual e local, a fim de reduzir a espécie de desconfiança quanto ao sistema que em alguns casos ainda continua a existir.
Quando eu vivia no Illinois, trabalhei pela aprovação de uma lei que proibia o "racial profiling" [seleção de suspeitos para revista com base na raça] no trabalho policial, e o projeto se resumia a duas coisas simples: a primeira era reunir dados sobre as paradas de veículos pela polícia, e sobre a raça da pessoa ao volante. Mas a outra coisa era direcionar recursos aos departamentos policiais do Estado para ajudá-los a pensar sobre possíveis distorções raciais e maneiras de profissionalizar ainda mais a ação das autoridades.
E inicialmente, os departamentos de polícia de todo o Estado resistiram a isso, mas na verdade vieram a reconhecer que, se o processo fosse realizado de maneira justa e clara, permitiria que fizessem seus trabalhos melhor, e com isso as comunidades teriam mais confianças neles
e ajudariam mais quanto à aplicação da lei. É evidente que a polícia e a Justiça criminal têm um trabalho muito difícil.
Assim, essa é uma área onde acredito que existam muitos recursos e exemplos sobre as melhores práticas que poderiam ser empregados caso os governos estaduais e locais se provem receptivos. E acredito que muitos desses governos o seriam. Vamos tentar descobrir maneiras de pressionar por esse tipo de treinamento.
Seguindo linha semelhante de raciocínio, creio que seria útil para nós examinar algumas leis locais e estaduais e determinar se elas foram concebidas de maneira a encorajar o tipo de altercação, confronto e tragédia que vimos no caso da Flórida, em lugar de atenuar possíveis
confrontos.
Sei que houve comentários sobre o fato de que as leis de "defesa do espaço pessoal" em vigor na Flórida não foram invocadas pela defesa nesse caso. Por outro lado, estamos enviando uma mensagem como sociedade, em nossas comunidades, de que alguém que esteja armado pode
ter o direito de usar essas armas mesmo que haja outra maneira de sair de uma situação - e será que isso realmente vai contribuir para a espécie de paz, segurança e ordem que gostaríamos de ver?
E para aqueles que resistem à ideia de que devemos estudar recursos como essas leis de "defesa do espaço pessoal", eu gostaria simplesmente de pedir que as pessoas considerem: se Trayvon Martin fosse maior de idade e estivesse armado, ele poderia ter defendido o seu espaço pessoal, naquela calçada? E será que realmente acreditamos que ele teria justificativa para atirar em Zimmerman, que o estava seguindo de carro, porque se sentiu ameaçado? Se a resposta a essa pergunta for no mínimo ambígua, parece-me que deveríamos estar interessados em examinar as leis desse tipo.
Em terceiro lugar - e esse é um projeto de longo prazo -, precisamos dedicar algum tempo a pensar sobre como podemos reforçar e amparar os nossos meninos afro-americanos. E isso é algo sobre o que Michelle e eu conversamos bastante. Existem muitas crianças por aí que precisam de ajuda e recebem muito reforço negativo. Será que não há nada mais que possamos fazer para lhes dar a sensação de que seu país se preocupa com elas, acredita em seu valor e está disposto a investir nelas?
Não sou ingênuo quanto às perspectivas de algum novo e grandioso programa federal para isso. Não estou certo de que seja sobre isso que estamos falando aqui. Mas reconheço que, como presidente, tenho certo poder de convocação e existem muitos bons programas já em curso no país, nessa frente de ação. Que possamos reunir líderes empresariais, funcionários eletivos locais, líderes religiosos, celebridades e atletas, e descobrir como podemos fazer um trabalho melhor de ajuda aos jovens afro-americanos para que sintam ser parte integral de nossa sociedade e que dispõem de bons percursos e oportunidades de sucesso - acredito que essa seria uma ótima consequência para uma situação que foi evidentemente trágica. E vamos dedicar algum tempo a trabalhar nisso e pensar sobre isso.
Por fim, acredito que será importante que todos nós contemplemos nossa própria atitude quanto a isso Houve sugestões de que convoquemos um diálogo sobre a raça. Não considero especialmente produtivo que políticos tentem organizar conversações. Elas terminam sendo forçadas e politizadas, e as pessoas se veem confinadas às posições que tinham no começo do processo. Por outro lado, nas famílias, igrejas e locais de trabalho, existe a possibilidade de que as pessoas sejam um pouco mais honestas, que ao menos se perguntem se estão fazendo tudo que podem para escapar à parcialidade de suas percepções. Existe a possibilidade de que elas questionem se estão fazendo o máximo que podem para julgar as pessoas não pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Creio que esse seria um exercício apropriado, depois de uma tragédia como essa.
E permitam-me deixar com vocês um pensamento final: o de que, por mais difícil e desafiador que tenha sido todo esse episódio, para muitas pessoas, não quero que percamos de vista o fato de que as coisas estão melhorando. Cada geração sucessiva parece estar fazendo progresso na mudança de atitudes quanto à raça. Não significa que vivamos em uma sociedade pós racial. Não significa que o racismo tenha sido eliminado. Mas quando falo com Malia e Sasha, quando ouço seus amigos e os vejo interagir, eles são melhores do que nós - melhores do que nós fomos - quanto a essas questões.
E por isso precisamos ser vigilantes e trabalhar quanto a essas questões. E aqueles de nós que detêm posições de autoridade devem fazer todo o possível para encorajar a porção mais nobre de nossa natureza, em lugar de usar episódios como esse para agravar as divisões. Mas também precisamos confiar nas crianças atuais, porque acredito que tenham mais juízo do que tínhamos no passado, e certamente mais juízo do que tinham os nossos pais ou avós; e que, nessa longa e difícil jornada, estamos nos tornando uma união mais perfeita - não uma união perfeita, mas uma união mais perfeita.
Tradução de Paulo Migliacci
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