Nova embaixadora dos EUA diz que relação com o Brasil tem "problemas", mas segue forte
Há três meses no Brasil, a embaixadora dos Estados Unidos, Liliana Ayalde, disse que a visita oficial da presidente Dilma Rousseff a Washington está em aberto e que a data depende dela, mas fez uma advertência: que seja o mais distante possível das eleições brasileiras de outubro.
"Se ficar muito perto [da eleição], nós vamos recomendar que essa data não é conveniente para os Estados Unidos, para não se imiscuir em assuntos políticos domésticos. Imagine como seria a crítica de alguns países da região!".
Em sua primeira entrevista exclusiva, falando em português, Ayalde foi cautelosa ao comentar a espionagem, mas criticou o Itamaraty por ter sido deselegante e só ter destacado o segundo time para o almoço de despedida de seu antecessor Thomas Shannon: "Pelo que li, acho que há maneiras melhores de comunicar as coisas positivas e negativas".
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Folha - Seu antecessor Thomas Shannon chegou num momento muito positivo e saiu num ambiente pessimista. Como fazer o percurso inverso?
Liliana Ayalde - É particularmente importante investir em conhecer as pessoas e o país, que não é só Brasília. Nesses três meses, já me reuni com muita gente, talvez mais gente do que alguns dos meus antecessores que estiveram aqui mais tempo. Fui a São Paulo, que é o número 1 do mundo em concessão de vistos, e também Rio, Recife, Porto Alegre, Salvador.
Conheci os consulados e também empresários, estudantes, jornalistas, representantes da sociedade civil.
Em São Paulo, conversei inclusive com representantes da comunidade muçulmana. No Rio, fui ao morro Santa Marta. Também, claro, apresentei credenciais à presidente Dilma, que foi muito calorosa, e me apresentei ao chanceler [Luiz Alberto] Figueiredo, ao segundo escalão do Itamaraty, assim como conversei, por exemplo, com o ministro Celso Amorim [Defesa] e o professor Marco Aurélio Garcia [assessor internacional de Dilma]. Ah! Também me reuni com o ex-presidente Lula, em São Paulo, para saber como eles todos estão vendo a relação.
Há um consenso. Todos valorizam a importância da relação da parceria estratégia.
O resultado do seu empenho, porém, depende do respaldo de Washington e das respostas do seu governo ao pedido brasileiro de desculpa no caso da espionagem. Isso não evoluiu?
As conversas continuam e há o compromisso do presidente [Barack] Obama de fazer uma revisão profunda de tudo isso, mas não é fácil, porque participam muitas agências e vai ser direcionada não apenas para o Brasil, mas também para a própria audiência norte-americana.
O que se procura é um equilíbrio entre a necessidade de ter a inteligência, por razões de segurança nacional, mas respeitando os direitos individuais. Esse processo já dura uns dois meses e o importante é que o presidente determinou que quer tudo concluído antes do final deste ano.
Sérgio Lima/Folhapress | ||
Liliana Ayalde, nova embaixadora dos EUA no Brasil; segundo ela, relação entre os dois países tem "problemas", mas segue forte |
Faltam apenas alguns dias. Que tipo de conclusões o presidente exigiu?
Ele quer uma revisão de tudo o que foi feito, com recomendações para que ele decidir o que fazer.
O anúncio será já em janeiro?
Vamos ser realistas. Se ele recebe agora, precisará de um tempo para analisar tudo e só depois tirar suas próprias conclusões e decidir como ele vai apresentar para a opinião pública e para os países parceiros. O Brasil está entre eles, mas não é o único.
Por que o governo pediu desculpas muito mais enfáticas para a Alemanha do que para o Brasil?
Não tenho uma justificativa. Mas teve também uma conversa longa com a presidente Dilma, por 40 minutos. Só que não foi uma coisa pública, foi privada.
Como Washington recebeu o discurso da presidente Dilma na ONU? Ela foi bem dura, não é?
Foi dura, sim... Com preocupação, sem dúvida. Era um foro de temas globais e esse tema gerou declarações muito duras, mas vamos superar isso. É um processo e temos o compromisso de falar seriamente sobre isso assim que o presidente Obama decidir o rumo.
A viagem da presidente só foi adiada ou, na prática, está cancelada?
Não, não está cancelada. Foi adiada e, se a presidente se reprogramar, sei que o presidente Obama está aberto. Mas, se não se decide, se fica esperando...
A iniciativa tem de ser de quem?
Da presidente Dilma. O convite está em aberto, não fechou, está pendente. Agora, também é preciso ver a questão de conveniência. Se me falar: 'Ah! Quero uma audiência em 25 de dezembro', não se pode, não é? É preciso um calendário realista, procurar os espaços, porque tem Carnaval, tem os jogos [Copa do Mundo], tem as eleições.
Mas a visita da presidente brasileira ao presidente da maior potência justamente em 2014, quando ela é candidata à reeleição, não pode interferir nas eleições aqui? Não há um prazo limite para a realização da visita?
Não há nenhuma data, mas, claro, se ficar muito perto [da eleição de outubro], nós vamos recomendar que essa data não é conveniente para os Estados Unidos, para não se imiscuir em assuntos políticos domésticos. Imagine como seria a crítica de alguns países da região! Somos muito cautelosos nisso e eu, pessoalmente, com minha equipe, tenho sempre o cuidado de não estar em qualquer coisa que possa ser interpretada como tomada de posição para um lado ou para outro.
Teria de ser quanto tempo antes das eleições?
Não conheço a dinâmica das eleições no Brasil, e os brasileiros, inclusive os da nossa própria equipe, são os mais aptos para dizer isso. Mas há as datas do calendário eleitoral que são claras e públicas, como o início oficial da campanha. À medida que vão se aproximando as eleições, qualquer coisa que façamos na embaixada, como Estados Unidos, pode repercutir no processo eleitoral. Então temos de avaliar com muita cautela. Até mesmo uma participação minha num evento. Não vou a nenhum evento que possa ser interpretado como apoio, como tomar posição.
Como outros embaixadores [o da Venezuela] já fizeram aqui, em reuniões do PT?
Sim, por exemplo.
Isso é fora da regra diplomática?
Sim, sim. Até por isso me reuni com o ex-presidente Lula agora e não depois, porque depois ele vai estar muito ativo.
A questão da espionagem teve muito impacto em várias áreas, como os diálogos de energia e de defesa, a parceria em comunicação e tecnologia da informação e o acordo de Previdência. Está tudo parado?
Eu diria que não está tudo parado, mas que, sim, os diálogos de alto nível foram afetados. Concordamos que seria difícil trazer uma autoridade de energia ou de defesa logo depois do cancelamento da visita da presidente. Seria perto demais. Não havia clima.
Era preciso dar um tempo, até porque não seria prudente forçar, porque o diálogo é de duas partes, temos de acordar as agendas. Mas os temas das agendas estão sendo trabalhados no nível técnico, os grupos de trabalho continuam atuando. O que foi adiado foram os contatos de alto nível.
Não houve recuo, por exemplo, na abertura do mercado para a carne bovina brasileira in natura, que estava praticamente definida?
Não foi suspenso e houve até uma reunião recente, uns dez dias atrás. Não foi de alto, alto nível, mas foi. Está progredindo. Não decidiram: 'Vamos abrir o mercado para a carne bovina amanhã!', mas vai numa direção positiva.
E os caças?
Bem, já me reuni com o ministro Amorim, mas a intenção não era chegar lá já falando de caças. Evidentemente, queremos vender e estamos por trás da proposta da Boeing e eu disse para o ministro que não tem dúvida de que consideramos a proposta da Boeing a melhor de todas, mas é importante trabalhar a relação e há muito mais o que conversar na área de defesa.
Havia a expectativa real de que, se Dilma fosse aos EUA em outubro, ela anunciaria lá a opção pela Boeing?
Sim, havia.
Quem perde mais com o afastamento, os EUA ou o Brasil?
Essa pergunta fica no ar... Acho que as duas partes sofrem, atrasam.
O Global Entry voltou para a gaveta?
Isso já tinha avançado bastante e considerávamos que, com uma reunião de alto nível, teria avançado ainda mais. Estamos trabalhando, não estamos parados, mas diminuiu o ritmo de trabalho, inegavelmente.
Então, a sociedade também está pagando o preço do estremecimento neste momento?
Felizmente, o que percebo, nas minhas reuniões e viagens, é que, apesar de ter problemas, a relação é incrivelmente forte. A razão para eu andar tão ocupada é que o comércio está crescendo, os investimentos estão aumentando -e não apenas os americanos no Brasil, mas os brasileiros nos Estados Unidos também.
Em que áreas?
Sou de Maryland e acompanhei o governador de lá, que veio aqui com uma delegação de 90 pessoas, e fiquei muito contente quando ele anunciou que foi firmado um acordo para abrir a sede da maior empresa de fármacos no Estado, com investimento de US$ 200 milhões. O ritmo dos dois lados está realmente ativo.
E os vistos continuam crescendo?
É inacreditável. Miami passou Buenos Aires como destino número um de brasileiros e o total de turistas continua crescendo. Temos trabalhado enormemente para resolver problemas de reclamações nos consulados, para agilizar os processos, para ganhar tempo no agendamento. Já temos mais de um milhão de vistos emitidos, com 18% a mais do que no ano passado.
São turistas, empresários, estudantes. Aliás, temos cerca de 20 mil estudantes do Ciências sem Fronteiras e já há mais 9.000 sendo processados. E os depoimentos deles têm sido muito positivos. Independentemente dos problemas, a sociedade brasileira continua querendo essa parceria.
O Brasil é um dos top 5 do turismo nos EUA e os brasileiros, que gastavam menos de US$ 2 bilhões lá em 2004, agora já gastam umas cinco vezes mais.
Definitivamente isso é uma força, porque o brasileiro vai e gasta.
Então, como fica o fim do visto obrigatório?
É possível, mas não de um dia para outro. É preciso haver um sistema de intercâmbio sobre os passageiros, o que leva tempo para atender os nossos estatutos de segurança.
Vinte anos?
Não sou tão negativa. Espero que possa ser bem antes.
O que foi mais positivo no acordo de Bali da OMC?
Não tenho os detalhes, mas o mais importante foi o acordo em si, foi conseguir o acordo entre todos. É um avanço.
Onde se encaixa a América Latina na estratégia dos EUA de fechar acordos em bloco com a Europa e com a Ásia?
Temos acordos bilaterais com a região e esses acordos estão muito avançados, porque já foram ratificados pelos congressos dos países.
O Brasil enterrou a Alca, investiu na Rodada Doha, que não foi concluída, e descartou acordos bilaterais com os EUA, dele e dos parceiros do Mercosul. O Brasil está perdendo o bonde?
Desde que cheguei, tenho escutado muito do setor privado, mais e mais, a necessidade de um acordo bilateral que poderia beneficiar muito o país. É uma discussão saudável.
Invertendo o jogo, não preocupa os EUA estar perdendo espaço para a França e até para a Rússia na área de defesa no Brasil, o principal país da América do Sul?
Estamos convencidos de que temos a melhor tecnologia em certos nichos. Cada país tem sua soberania para decidir o que quer, mas o que é melhor é melhor.
Os EUA estão preocupados com a situação da Venezuela, que vive imposição de queda de preços, desabastecimento, inflação, desemprego? E com a Argentina, onde há saques e mortes?
A América Latina é muito dinâmica, em alguns momentos uns países vão muito bem, outros não. Estamos observando a situação na Venezuela, preocupados com os temas que você listou e com outros também. Mas o México, a Colômbia e o Peru estão indo muito bem, por exemplo.
A sra. só citou os maiores aliados dos EUA. Só eles vão bem?
Bom, mas eles também têm outros aliados. Por exemplo, não se tinha muita expectativa de que o [Ollanta] Humala [presidente do Peru] seria um amigo dos EUA, mas terminou sendo uma pessoa muito pragmática. A ideologia não deve impregnar as decisões. Você pode ser um país de esquerda e se relacionar com todos e ter uma economia aberta, que gere desenvolvimento para o seu país.
O Departamento de Estado detecta um viés antiamericano no Brasil?
Sempre vai ter, até dentro dos próprios Estados Unidos tem. Mas o embaixador Shannon elevou a parceria em patamares que nunca se tinha visto historicamente antes e isso foi um reconhecimento da importância das relações bilaterais. Precisamos ser tolerantes numa democracia. Alguns pensam diferente.
Como a sra. viu a deselegância do Itamaraty na despedida do Shannon?
Eu não estava lá, não vi, mas sou colega e admiradora do embaixador Shannon, que está [em Washington] numa posição de muita relevância, de muita confiança do secretário de Estado. Foi um reconhecimento do trabalho que ele fez no Brasil, apesar do momento difícil.
Faz parte da boa norma diplomática tratar um embaixador assim?
Pelo que li, acho que há maneiras melhores de comunicar as coisas positivas e negativas.
A liberação de uso e plantação de maconha no Uruguai preocupa?
Bem, nós temos esse problema dentro dos EUA. A lei federal proíbe, mas dois Estados, Colorado e Oregon, permitem. Nós acompanhamos.
Pode se alastrar do Uruguai para o resto do continente?
Espero que não.
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