Shaoshan vive da idolatria a Mao Tse-tung
Guiados pela voz de um mestre de cerimônias que ecoa em alto-falantes, devotos depositam flores e se curvam três vezes, como numa coreografia ensaiada.
A reverência é quase religiosa diante da gigantesca estátua de Mao Tse-tung em Shaoshan, onde nasceu o fundador da China moderna.
O ápice da peregrinação ocorre hoje, em meio à celebração pelos 120 anos de nascimento de Mao.
Décadas após sua morte, em 1976, os chineses se dividem em relação ao legado do homem que unificou o país, mas causou milhões de mortes com políticas equivocadas e perseguições políticas.
O culto à personalidade da época em que Mao estava no poder foi arquivado no resto do país, mas em Shaoshan continua bem vivo.
Para os peregrinos, Mao ocupa o panteão dos deuses, com poder de trazer bênção e boa sorte.
Muitos carros da cidade têm pequenos bustos dele no painel ou penduricalhos com seu rosto no retrovisor, que lembram as imagens de santos usadas no Brasil.
"Mao é um santo. Viveu uma vida digna e deu exemplo de honestidade", diz o taxista Zuo Jun, 35, que pôs um busto do líder no painel. "Ele abençoa a minha viagem."
A estátua de bronze de seis metros de altura na praça central da cidade é o principal altar da veneração. O corpo embalsamado de Mao está em exposição na praça da Paz Celestial, em Pequim.
Mas a meca do maoismo é Shaoshan, cidade de 120 mil habitantes. De tradição agrícola, hoje sua maior vocação é turística.
RITUAL
Quem quer cumprir o ritual completo paga 390 yuans (R$ 151) por uma coroa de flores, colocada solenemente ao pé da estátua por um soldado.
Em seguida, o visitante se curva três vezes, em sinal de reverência. Alguns juntam as palmas das mãos, num momento de oração.
Com o filho de dez meses no colo, o gerente de fábrica Mao Jiarui, 30, e a enfermeira Tao Pingping, 25, repetem o ritual com frequência.
"Desde que ele nasceu, nós o trazemos quase toda semana, para que seja abençoado", diz Mao, que, apesar do mesmo sobrenome do líder, não tem parentesco com ele.
O casal reconhece que Mao cometeu erros, mas repete o mantra do governo, afirmando que ele acertou muito mais. A maioria dos jovens chineses como Mao e Tao, contudo, pouco sabem sobre as ações mais desastrosas ordenadas por ele.
Marcelo Ninio/Folhapress | ||
O gerente de fábrica Mao Jiarui com sua mulher, a enfermeira Tao Pingping, e o filho de dez meses diante da estátua de Mao |
Nos livros escolares quase não há referência à fome que matou pelo menos 36 milhões de pessoas (1958-1962), causada pela política de industrialização forçada de Mao.
Também não se ensina sobre os horrores da Revolução Cultural (1966-1976), o período de fanatismo e perseguição política que só terminou com a morte de Mao.
Em Shaoshan, os erros são relevados sob o som da caixa registradora. Lojas vendem estátuas de vários tamanhos, livros, CDs com hinos comunistas e muitos outros souvenires maoistas.
O departamento de turismo estima que a cidade vá fechar o ano com 10 milhões de visitantes, um recorde.
O interesse, admitem funcionários da prefeitura, foi turbinado pela repetição da retórica maoista pelo líder máximo do país, Xi Jinping, desde que ele tomou posse, em março deste ano.
Mas a ambivalência é a marca do governo.
Editoria de Arte/Folhapress |
Aproveitando a campanha de frugalidade e contenção de gastos lançada por Xi, o governo evitou organizar grandes comemorações para o aniversário de Mao.
Para analistas, o principal motivo é não dar corda aos neomaoistas, num momento em que a prioridade do governo é implementar reformas que visam aumentar o papel do mercado na economia.
Nas grandes cidades, há tempos o culto a Mao é cada vez mais discreto. Seu retrato ainda está na entrada da Cidade Proibida, em Pequim, e estampado no dinheiro chinês. Mas as referências, aos poucos, ficam menos visíveis.
Em recente visita a Pequim, a comitiva do governo do Rio Grande do Sul se decepcionou ao ver que não havia retrato de Mao nem na escola do Partido Comunista.
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