Confidente publica anotações de João Paulo 2º destinadas à queima
Desafiar as instruções explícitas de um papa não é um hábito comum entre os cardeais da Igreja Católica, especialmente quando o papa em questão é imensamente popular, está à beira de ser canonizado como santo e já não pode objetar.
Assim, a decisão do cardeal Stanislaw Dziwisz de publicar um livro com as anotações pessoais do papa João Paulo 2º, ainda que o testamento do pontífice tenha determinado que fossem queimadas, causou considerável controvérsia e boa dose de indignação moral.
O livro, "Estou Completamente nas Mãos de Deus", foi lançado nesta quarta-feira na Polônia, a terra natal de João Paulo 2º. E muita gente naquele pais intensamente católico e conservador está recebendo a publicação como uma traição profana - especialmente porque Dziwisz, hoje arcebispo de Cracóvia, foi secretário de João Paulo 2º ao longo de seu pontificado, servindo como um de seus mais próximos confidentes.
Dziwisz contou recentemente a repórteres que "não teve coragem" de seguir as instruções de João Paulo 2º e destruir as anotações, que contêm meditações religiosas escritas de julho de 1962, quando ele era um jovem bispo iniciando sua ascensão, a março de 2003, momento em que ele era papa há 24 anos e o Mal de Parkinson já estava erodindo sua saúde. João Paulo 2º, que morreu em 2005, será canonizado pelo Vaticano em 27 de abril.
"Ao escrever seu testamento, o Santo Padre sabia que estava confiando esses cadernos a alguém que os trataria com responsabilidade", disse Dziwisz em entrevista coletiva em Cracóvia, em 22 de janeiro. "Não tenho dúvida de que esses itens eram importantes, testemunhos da espiritualidade de um grande papa, e que por isso seria um crime destrui-los".
Ele invocou o desespero dos historiadores depois da queima das cartas do papa Pio 12.
Mas o reverendo Tadeusz Isakowicz-Zaleski, especialista no papel da Igreja Católica durante a era comunista na Polônia, implorou aos poloneses que não comprassem o livro, porque sua publicação violava o testamento do papa.
"Na cultura europeia, um testamento é sempre de cumprimento compulsório, desde que sua implementação não viole a lei e a moralidade", disse Isakowicz-Zaleski à rede de TV polonesa TVN. "Isso é requerido não só pelos estatutos legais e os bons modos mas pelo respeito aos mortos. Esse ato público de desobediência é uma forma de antitestemunho, e não pode ser justificado com a explicação de que serve ao bem da Igreja. Um clérigo que trabalhava como secretário sabe mais do que o sucessor de São Pedro?"
O livro, uma edição em capa dura com 640 páginas, está sendo publicado pela Znak, uma editora de Cracóvia. É possível que seja mais comprado do que lido: aparentemente, o texto contém reflexões abstrusas sobre citações bíblicas, que um leitor leigo pode considerar pouco acessíveis. Dziwisz diz que planeja usar os direitos autorais da venda do livro para a construção de um museu e santuário em honra de João Paulo 2º, com o nome de "Não Tema".
O cardeal não é nem de longe a primeira pessoa a ignorar o desejo de uma pessoa próxima quanto a garantir a queima de seus papéis depois de sua morte. A maior parte dos escritos de Franz Kafka teria ficado inédita se Max Brod, amigo do escritor, tivesse honrado seu desejo de que todos os seus manuscritos, diários e cartas fossem destruídos sem ser lidos.
Nem todo mundo condenou a escolha do cardeal de publicar as anotações de João Paulo 2º, o que inclui alguns observadores inicialmente céticos. "Admito que, sem ter lido o livro, a decisão me surpreendeu de modo negativo", escreveu o reverendo Adam Boniecki, influente intelectual católico, em artigo para a revista "Tygodnik Powszechny", influente publicação católica polonesa, em 22 de janeiro. "Depois de ler os cadernos, porém, fico agradecido por, quanto a isso, o cardeal não ter se comportado como um burocrata escrupuloso".
R. Andrew Chesnut, professor de estudos religiosos na Virginia Commonwealth University, apontou para o fato de que o livro não estava coberto pela doutrina da infalibilidade papal, que se aplica a pronunciamentos sobre a doutrina da Igreja mas não às reflexões pessoais de um pontífice.
Ele afirmou que, enfim, era provável que João Paulo 2º perdoasse o cardeal pelo que alguns veem como transgressão moral.
"O papa, ainda que se irritasse, o teria perdoado", ele disse.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade
Um mundo de muros
Em uma série de reportagens, a Folha vai a quatro continentes mostrar o que está por trás das barreiras que bloqueiam aqueles que consideram indesejáveis